E-commerce transgride a ordem no Shopping Center?

Na contemporaneidade, o comércio eletrônico (e-commerce1), através de suas variadas formas, tem impactado nas relações, inclusive de consumo, sob a lente de como devem ser tratadas e reguladas. Participando ou, então, experimentando os efeitos deste cenário, encontra-se o Shopping Center físico, que demanda daquele que até então o observava e concluía acerca de sua função e, no entorno da qual empreendia sua estrutura, um pensamento “transgressor” de ideias até então postas, de maneira a construir respostas que tenham a finalidade de resguardar os interesses do todo. Mas que todo seria este? O todo organizado.
A este todo, ao longo do tempo, especialmente, os civilistas2, tendo em vista os recortes realizados quando da respectiva observação, aliado às suas próprias circunstâncias, atribuíram as mais diversas nomenclaturas, dentre elas: complexo organizacional, cidade em miniatura, complexo de relações internas ligadas por uma relação de solidariedade, organização unitária, núcleo unitário de interesses, dentre outras.
Mas, então, em apertada síntese, seria o Shopping Center um local em que se encontram variadas lojas e, portanto, verificando-se um “punhado3” de contratos que se relacionam, complexa e multidisciplinarmente, ao uso do edifício e ao desenvolvimento de variadas atividades econômicas empreendidas por seus ocupantes? Ou este todo constituiria um algo mais e que até então pouco se estuda a respeito?
Primeiramente e, como coloco em Marcelo Barbaresco (2022) a respeito da essência do Shopping Center, “se faz necessário criar e conformar a coisa e os inerentes comportamentos para com ela mesma de maneira que seja possível constituir a ideia de unidade. Isto é, de único local, de um negócio jurídico com características tais que o faz distinguir e, portanto, integrar e constituir, a priori, uma realidade jurídica diversa dos seus semelhantes. Esta certamente a intenção de todos aqueles que dele participam, reconhecendo como válida, […] esta circunstância ou, por vezes, bradando acerca de sua discordância que, certamente, se realiza de forma superficial, por conta da ausência de [necessário] ócio para examiná-la cuidadosamente. […] E em assim sendo faticamente, seria esta a essência que pode ser verificada em cada um dos elementos descritos e sumariamente caracterizados nos itens que [precederam esta] conclusão, qual seja, em ser ela – a administração única e centralizada – aquele fator que estabelece a estrutural diferença entre outros negócios jurídicos semelhantes e o empreendimento em shopping center.4”
Estabelecida, assim, a administração central como este fator de diferenciação, torna-se necessário, vinque-se mais uma vez, pensar de maneira a “transgredir”5, isto é, inscrever por meio de novas tintas, o que até então se colocava acerca deste conjunto, tudo de maneira a qualificá-lo como aquilo que, efetivamente, é. E por conta deste recorte, resultando sua acurada qualificação que, por sua vez, repercutirá, definitivamente, na identificação de resposta quanto a (im)possibilidade da prática do comércio eletrônico utilizando-se, de qualquer maneira, do físico Shopping Center.
Assim sendo e, como colocado em Marcelo Barbaresco (2022)6, após detidamente avaliar e ponderar acerca de cada um dos elementos, usualmente, constituintes da estrutura organizacional do Shopping Center físico e, por conta desta unicidade, emergindo questões relacionadas à remuneração devida pela ocupação e suas variadas possibilidades, acaba-se por identificar, para além de um conjunto de contratos incidentes sobre um corpo físico, em um estabelecimento de empresa.
Estabelecimento este que resulta, materialmente, da empresa organizadora dos fatores de produção intrinsecamente relacionados ao físico Shopping Center e de cada um dos demais estabelecimentos nele instalados. Melhor explicando: por conta de cada uma das atividades estabelecidas e exercidas pelos, assim nominados, “lojistas”, aliado ao fato da precedente e constante organicidade da administração central, emerge um estabelecimento que decorre do conjunto e que é indissociável dos demais estabelecimentos, inclusive, das lojas. Vinque-se: verifica-se, assim, ao lado dos estabelecimentos das “lojas”, o estabelecimento do Shopping Center, conjugando a coletividade de atividades.
Nele há, frise-se, para além de localização e edificação, todo um conjunto de fatores adequadamente pensados e refletidos em uma estrutura que rompe o aspecto físico e projeta seus efeitos em questões imateriais. E dessa circunstância decorrendo seu valor e sua potencialidade de geração de resultados (i.e. o good will of trade7).
Por meio dele, ou seja, do estabelecimento físico em Shopping Center, o comportamento esperado deve ser conforme àquilo que a todos interessou e, portanto, uniu em potência, tudo de maneira que seja o máximo possível seu valor de projeção externa. Isto é, no físico local em que estabelecido sejam concentradas experiências, inclusive culturais e que possam refletir, especial e esperadamente, em possível apropriação de produtos e/ou serviços por meio de seus frequentadores. Ademais, impossível o não reconhecimento de que o todo, isto é, o estabelecimento em Shopping Center, é maior, em potência, que o mero somatório de suas partes. E, em assim sendo o esperado e o previamente acordado, qualquer medida que possa, de alguma maneira, comprometer a potencialidade de resultados, macula o conjunto, ou seja, inclusive, o estabelecimento de empresa resultante desta composição organizacional.
Neste sentido, a prática de comércio eletrônico, que se utilize, direta e/ou indiretamente, do físico estabelecimento de empresa do Shopping Center fere a livre iniciativa e caracteriza Concorrência Desleal, geral e/ou específica e, portanto, sujeitando aquele que a praticar, às consequências estabelecidas em lei. E assim é verificado, pois, o que as normas que proíbem a concorrência desleal tutelam é a repressão a comportamentos desonestos, que violem a boa-fé, os usos e os costumes, tudo em desrespeito àquele que exerce a empresa, no respectivo estabelecimento, lealmente.
Desta maneira, considerando este cenário fático e inafastável que, inclusive, foi cientificamente comprovado, e que qualifica e eleva o edifício em que empreendido o Shopping Center à categoria de estabelecimento de empresa, conclui-se, citando o quanto colocado em Marcelo Barbaresco (2022): “(i) que a prática do [comércio eletrônico] e-commerce macula a lealdade negocial, caracterizando infração, por constituir meio inidôneo; (ii) caracteriza concorrência desleal específica ou genérica, a depender da prova a ser produzida e, (iii) torna mandatória que à base de cálculo para fins de apuração de eventual remuneração percentual estipulada seja acrescido o valor correspondente às transações realizadas através do [comércio eletrônico] e-commerce, desde que e, para quaisquer uma dessas hipóteses, seja utilizado e, pelo titular da respectiva empresa, direta ou indiretamente, total ou parcialmente, o estabelecimento de empresa instalado no estabelecimento em regime de Shopping Center.”
Afinal, como coloca Antoine de Saint- Exupéry: “Foi o tempo que perdeste com tua rosa que fez tua rosa tão importante. […] Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas.”
Para os fins e efeitos deste artigo, é considerado o comércio eletrônico e o e-commerce como sinônimos e constituintes de um gênero através do qual diversas poderão ser as espécies e/ou modalidades através das quais poderão ser desenvolvidos, tais como através dos marketplaces.
Jurista ou jurisconsulto, que se especializou em matéria civil. Colocado de outra forma: aquele que estuda o direito civil e, não, o direito comercial, isto é, o empresarial em que o centro do estudo é a figura dos empresários e seus respectivos papéis em determinado negócio.
Sentido figurado, sendo que a utilização desta palavra tem apenas e tão somente a finalidade de vincar o contexto do que se deseja iluminar por meio desta publicação que é dirigida ao público em geral e, não necessariamente, com formação jurídica.
1. Para os fins e efeitos deste artigo, é considerado o comércio eletrônico e o e-commerce como sinônimos e constituintes de um gênero através do qual diversas poderão ser as espécies e/ou modalidades através das quais poderão ser desenvolvidos, tais como através dos marketplaces. 2. Jurista ou jurisconsulto, que se especializou em matéria civil. Colocado de outra forma: aquele que estuda o direito civil e, não, o direito comercial, isto é, o empresarial em que o centro do estudo é a figura dos empresários e seus respectivos papéis em determinado negócio. 3. Sentido figurado, sendo que a utilização desta palavra tem apenas e tão somente a finalidade de vincar o contexto do que se deseja iluminar por meio desta publicação que é dirigida ao público em geral e, não necessariamente, com formação jurídica. 4. BARBARESCO, Marcelo. Shopping Center: fundamentos, direito de empresa e comércio eletrônico. São Paulo: Quartier Latin, 2022, p. 51-52. 5. A utilização das palavras “pensar” e “transgredir” é utilizada na medida em que, quando da sentada para a escrita deste artigo, estava o autor embriagado das ideias de Lya Luft, absorvidas por meio de seu livro titulado Pensar é Transgredir, publicado pela Editora Record, no Rio de Janeiro, ano de 2004, p. 34-75. E dentre as muitas possibilidades de citação, ressaltam-se algumas, por conta do incentivo que proporcionaram ao acurado pensamento: “[…] refletir é transgredir a ordem do superficial que nos pressiona tanto. […] a vida não está aí apenas para ser suportada nem vivida, mas elaborada. Eventualmente, reprogramada. […] Sonhar, porque se desistimos disso apaga-se a última claridade e nada mais valerá a pena. […] Eu, por profissão cavo palavras nas minas do silêncio: não para apaziguar, mas provocar; não para responder, mas porque não cesso de indagar. […] o interessante na vida não são as respostas: são os enigmas.” 6. Obra Citada anteriormente. 7. Isto é: a capacidade de gerar lucros; riquezas; que no direito brasileiro, recebe o nome de Aviamento. 8. Como colocado em Marcelo Barbaresco (2022), Ihering afirma que a concorrência é “o regulador espontâneo do egoísmo.” (Obra Citada, p. 333). E mais à frente, é reproduzida alegoria criada por Francesco Carnelutti em que coloca: “Os concorrentes correm juntos em direção a uma mesma meta; vence quem chega primeiro. O jogo é leal, conquanto como um se sirva, para ultrapassar os demais, de suas próprias forças; quando assim se procede, o direito assiste impassível à competição, como os juízes de uma corrida. Mas o direito não permite qualquer dos concorrentes impeça o outro de servir-se de suas próprias forças, nem mesmo que se trate de utilizar as forças do oponente; por exemplo, quando se trate de uma corrida de cavalos o oponente procure frear um concorrente ou trocar de cavalgadura.” (Obra citada, p. 338). 9. A depender das provas a serem produzidas. 10. E, acerca das consequências, recomenda-se a leitura de Marcelo Barbaresco (2022), Obra Citada, notadamente, p. 327-376. 11. SAINT-EXUPÉRY, Antoine de. O pequeno príncipe. Trad. Dom Marcos Barbosa. 23ª. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1981, p. 74.
*A opinião da autor não reflete, necessariamente, a opinião da Abrasce.