A identidade de gênero e a utilização de sanitários públicos nos shopping centers
É inegável que os shopping centers no Brasil, não de hoje, vêm ocupando o lugar dos espaços públicos que foram subtraídos dos cidadãos, seja pela violência crescente ou pelo simples abandono governamental dos bens, parques e áreas de lazer que deveriam ser destinadas à população. Não é por outra razão que as administrações dos empreendimentos dessa natureza se habituaram a lidar com (e se posicionar diante de) questões sociais polêmicas, muitas vezes antes mesmo das autoridades, governantes ou do Judiciário.
Uma recente discussão, envolvendo a insatisfação de um grupo de 21 funcionárias de lojas da praça de alimentação de um dos mais expressivos shopping centers de Salvador, em razão da utilização do sanitário feminino por uma mulher trans, também funcionária de uma loja do empreendimento, é mais um exemplo dessa realidade e exigiu posicionamento adequado da administração do referido shopping. Por certo, a discussão acerca da possibilidade de utilização dos sanitários públicos por pessoa que, na condução da sua vida social, não se identifica com o seu gênero de nascimento e, portanto, com o gênero constante da sua identidade civil, possui implicações jurídicas mais complexas do que a princípio possa parecer.
Diz-se isso tendo em vista que as questões relativas à compatibilização da identidade de gênero e, de forma mais ampla, as relativas à liberdade de orientação sexual, estão intimamente relacionadas com os chamados direitos da personalidade, portanto, com a própria dignidade da pessoa humana que é nada menos que um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, conforme preceito inscrito no art. 1º, III da Constituição da República de 1988.
Os direitos da personalidade se destinam à constituição de um núcleo de proteção psicofísica do indivíduo, tutelando interesses que sejam essenciais à preservação do próprio ser humano.
Por certo, a preservação do ser humano passa pela salvaguarda de todo o conjunto de atributos que conduzem à adjetivação do “ser” como “humano”: liberdade de pensamento, escolhas, honra e, inegavelmente, dignidade.
Nos dias atuais, nos quais os direitos da personalidade atingiram inegável reconhecimento nos mais diversos ordenamentos jurídicos, mesmo como categoria autônoma, se nota sem grande esforço que sua abordagem doutrinária percorre necessariamente a trilha aberta pelo chamado princípio da dignidade humana.
Como bem destaca a Professora Cantali:
[…] a dignidade da pessoa humana se traduz para além de outras dimensões, em uma dimensão dúplice, protetiva e promocional da pessoa humana. Na perspectiva promocional revela-se a autodeterminação dos interesses pessoais, expressão da autonomia e da liberdade, base da consagração do direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade […] (CANTALI, 2009)
Em outros termos, com a elevação da dignidade humana à condição de pilar do próprio Estado de Direito, passou-se a reconhecer a personalidade como valor; como fator cujo respeito e promoção são essenciais à plena realização das finalidades do próprio Estado.
Vista como valor, a personalidade passa a exigir uma proteção que não seja limitada por enumerações legislativas. A complexidade da personalidade humana não caberia em numeros clausus apresentados em incisos de artigos de leis civis.
Como destaca o Professor Gustavo Tepedino:
Com efeito, a escolha da dignidade da pessoa humana como fundamento da República, associada ao objetivo fundamental de erradicação da pobreza e da marginalização, e de redução das desigualdades sociais, juntamente com a previsão do §2º do art. 5º, no sentido da não exclusão de quaisquer direitos e garantias, mesmo que não expressos, desde que decorrentes dos princípios adotados pelo texto maior, configuram uma verdadeira cláusula geral de tutela e proteção da pessoa humana, tomada como valor máximo pelo ordenamento (TEPEDINO, 2008)
Assim, ainda que estejamos diante de ordenamentos jurídicos que não tragam, de modo explícito, em suas cartas constitucionais a previsão ou referência direta ao direito ao livre desenvolvimento da personalidade – em todas as suas várias dimensões, que envolvem a liberdade de orientação sexual e a identidade de gênero, por exemplo – não se pode negar vigência a tal preceito geral de tutela da personalidade, como decorrência do próprio princípio da dignidade humana.
Nesse sentido é, também, a conclusão de Joyceane Bezerra, segundo a qual “o amparo legal ao desenvolvimento da pessoa humana só se efetivará a partir de uma cláusula geral de promoção e tutela, capaz de ultrapassar a proteção dada aos direitos subjetivos enumerados e englobar toda a riqueza das manifestações da personalidade do homem em sua singularidade.” (MENEZES, 2009)
Por tais razões, a proposição de soluções simplistas como a excludente criação de sanitários exclusivos ou mesmo a adoção de soluções restritivas, assim como a da exigência de utilização do sanitário que se coadune exclusivamente com a identidade civil do indivíduo ou com seu gênero biológico, não podem certamente ser admitidas, sob pena de ofensa ao direito ao livre desenvolvimento da personalidade e, portanto, à dignidade da pessoa humana, constitucionalmente consagrada.
*A opinião do autor não reflete, necessariamente, a opinião da Abrasce.