MAR/ABR 2021 – Edição 234 Ano 34 - VER EDIÇÃO COMPLETA

O IGP nas locações em shopping centers

9 de abril de 2021 | por José-Ricardo Pereira Lira | Fotos: Divulgação
Debate em pauta tem por objeto as locações concretas, em plena execução, nas quais o índice foi livremente contratado pelas partes

É notório que o IGP-M e o IGP-DI, ambos da FGV, constituem os principais indexadores utilizados em contratos celebrados entre lojistas e empreendedores de shopping centers, para a indexação de aluguel e outras obrigações pecuniárias (a seguir, os dois índices serão designados, indistintamente, IGP).

A partir do último quadrimestre de 2020, por meses sucessivos, o IGP capturou inflação anual em percentual superior ao apurado por outros índices de preços, circunstância que levou alguns lojistas a pleitearem no Judiciário o afastamento da sua incidência regular em contratos em curso.

José-Ricardo Pereira Lira, sócio da Lobo & Lira Advogados

Alegam esses empresários que o IGP, de forma imprevisível, ter-se-ia “descolado” de outros índices, como o IPCA do IBGE, apontando como causas do fenômeno a pandemia da Covid-19 e as oscilações dos preços das commodities nos mercados globais, a tornar o indexador contratado impróprio para corrigir monetariamente aluguéis em shopping centers.

Embora trate-se de disputa ainda embrionária, segundo decisões até aqui disponíveis, tem preponderado o entendimento no sentido de prestigiar a força vinculante dos contratos, parecendo-nos correta essa tendência, que concilia segurança jurídica com fundamentos econômicos consistentes.

Oportuno salientar que o debate em pauta não diz respeito ao indexador adequado para contratos a celebrar, no futuro. A controvérsia tem por objeto, especificamente, locações concretas, em plena execução, nas quais o IGP foi livremente contratado pelas partes, destacando-se, como elemento decisivo para o diagnóstico do caso, a singularidade do negócio entre lojistas e empreendedores de shopping centers, quando considerado o universo das locações imobiliárias tradicionais.

Sabe-se, a propósito, que as locações de imóveis são classificadas, para fins diversos, em dois grandes grupos: o das locações residenciais e o das locações não residenciais. Nos dois casos, o locador, como regra, é um investidor típico do segmento imobiliário que, em tal condição, busca auferir renda com a entrega da posse de sua propriedade ao locatário, assim exercendo atividade desprovida de índole empresarial.

Na contraparte do contrato figuram, se residencial a locação, um inquilino pessoa física que exerce seu direito à moradia utilizando-se de imóvel de terceiro, sendo encontrados, na locação não residencial, igrejas, associações, escritórios de advocacia ou de contabilidade, além de lojas de rua de diferentes portes. Não há, como fator determinante do perfil do locatário, o desenvolvimento de atividade empresarial.

Assim, no ambiente das locações tradicionais, não se descarta que, na busca platônica por um indexador ideal, as partes possam manifestar preferência por índices como o IPC da FGV, o IPC da FIPE ou o IPCA do IBGE, em lugar do IGP, em razão da maior volatilidade deste, resultante de sua composição, que computa, entre outros, os preços no atacado e, como parte destes, as tais commodities impactadas pela variação cambial.

De fato, ainda que o IGP seja um indexador consagrado também nas locações tradicionais, é razoável admitir-se que os citados IPCs, assim como o IPCA, ao refletirem a inflação da família brasileira com renda de até certo número de salários mínimos, harmonizem, de modo mais conveniente, o critério de reajuste do aluguel com a realidade econômica das partes interessadas nos contratos, o que poderia justificar a sua escolha no momento da assinatura do contrato.

Tal cenário, porém, passa ao largo da cessão remunerada de espaço comercial em shopping center, que constitui modalidade de locação sui generis, sem semelhança com as demais espécies acima descritas.

Ao contratarem a cessão de espaço em shopping centers, locadores e locatários, invariavelmente, estabelecem vínculos recíprocos de cunho empresarial, onde a loja constitui insumo fundamental das atividades exploradas por ambas as partes do negócio.

Não se tem, na locação em shopping center, um investidor passivo na condição de locador, que restringe sua atuação, na órbita contratual, à entrega do imóvel ao locatário, garantindo a este a posse pacífica do bem, contra a remuneração ajustada.

Ao revés, esse locador é um ativo empreendedor do ramo varejista, que escolhe o terreno em que edifica o empreendimento, após detido estudo de seu potencial de vendas (área de influência); contrai financiamentos ou capta recursos nos mercados organizados para projetar e construir o shopping com olhos no conjunto de lojas a ser instalado no local; arregimenta as lojas âncoras; comercializa as lojas satélites; administra e organiza as atividades dos lojistas na fase de operação; realiza campanhas publicitárias; monitora o desempenho das lojas; mantém facilidades comuns aos lojistas; decide e realiza expansões e revitalizações, entre outras atribuições.

Como resultado desse volume expressivo de atividades, o locador-empreendedor faz jus a uma fração do faturamento do lojista, pela via do “aluguel percentual”, tendo ainda assegurado um piso remuneratório intitulado “aluguel mínimo”, cujo valor submete-se a reajuste monetário, pelo indexador consensualmente estipulado em contrato.

Tal indexador, cabe salientar, constitui peça chave do negócio empresarial estabelecido entre as partes, sendo certo que, assim como o locador, o locatário, na locação em shopping center, também é um empresário experiente e altamente especializado.

Com sua expertise, ao aceitar a inserção em contrato do índice de correção monetária de suas principais obrigações, esse locatário não age – nem poderia agir – de forma desatenta, sem a devida avaliação dos riscos pertinentes a essa decisão, quando se sabe que o contrato é de longa duração e a legislação vigente confere ao empresário a liberdade de escolha entre diferentes índices de preço, tema que será visto logo adiante.

Sobre a especial qualificação das partes nesse negócio, tem-se que o locador em shopping center pode ser, desde uma sociedade com capital aberto na bolsa de valores ou fruto de robustas parcerias internacionais, até um fundo de investimentos ou uma entidade de previdência complementar fechada com milhares de participantes.

As locatárias, a seu turno, são empresas poderosas, como as grandes lojas de departamentos, “megalojas” de marcas conhecidas nacionalmente, bancos de varejo, concessionárias de telecomunicações, redes de cinema, gigantes do fast food, ou mesmo, em alguns casos, elegantes grifes estrangeiras, além de ícones da tecnologia.

Quando não são desse porte enorme, tais locatárias respondem por lojas que, em sua maioria, ostentam marcas desenvolvidas em regime de franquia, assim integrando organizações sofisticadas e aparelhadas por consultores especializados em tais locações. Mencionem-se, ainda, as pujantes estruturas titulares de marcas diversas, também presentes em shoppings de todo o país. 

Por certo, ao avaliar a qualidade do IGP para figurar como indexador de locações imobiliárias em geral, inclusive com a ponderação do impacto que as oscilações dos preços das commodities nos mercados globais possam ter sobre o resultado da apuração da inflação em determinado período, não se pode olvidar a diferença fundamental existente entre:

(a) a locação de um apartamento, para fins de moradia, onde locador e locatário são pessoas naturais que praticam negócio sem natureza empresarial, motivados pela conjugação da expectativa do locador quanto ao retorno do investimento no imóvel e a capacidade de pagamento do locatário;

(b) a locação de um escritório de arquitetura, de um templo religioso ou de um bar na via pública, que obedecem ao mesmo binômio: expectativa de retorno do investimento do locador vs. capacidade de pagamento do locatário; e

(c) a locação de espaço comercial em shopping center, que constitui parte – apenas parte – de um negócio maior, de grande porte, em que figuram empresários escolados nos dois polos contratuais, ambos dedicados à exploração da atividade varejista, já hoje mesclando operações físicas, de internet, de delivery, entre outras, os quais, no ato da contratação da locação, vivenciam momento estruturante de seus negócios, onde cada cláusula – aí incluída a de reajuste do aluguel mínimo – é detidamente discutida e negociada, até sua inclusão, por consenso, no contrato.

Ostensivamente, contratos entre lojistas e empreendedores de shopping centers constituem negócios que diferem, em todas as perspectivas, das locações imobiliárias tradicionais, sendo essa uma das premissas básicas a considerar, quando se persegue a correta avaliação do índice como fator de reajuste de obrigações.

Assentadas as premissas até aqui postas, vale agora tecer breves comentários sobre o histórico do IGP. Divulgado desde 1947, com retroação de dados a 1944, esse índice foi concebido para refletir, em perspectiva abrangente, o movimento dos preços no país. Desde 1950, o indexador resulta da média aritmética ponderada de três outros índices da FGV: o Índice de Preços ao Produtor Amplo (IPA), o Índice de Preços ao Consumidor (IPC) e o Índice Nacional da Construção Civil (INCC).

Essa modelagem garante ao IGP a condição de autêntico índice geral de preços, com capacidade de medir, em bases contínuas, para divulgações mensais, a oscilação de preços verificada no processo produtivo em desenvolvimento no território nacional, com pesquisa de valores que cobre preços de matérias-primas agrícolas e industriais, de produtos intermediários (semielaborados) e de bens e serviços entregues ao consumidor final.

É fato que nem sempre o IGP serviu de fator de reajuste de prestações pecuniárias, na medida em que, desde que autorizada a correção monetária no país, nos anos 1960, até o advento do Plano Real, nos anos 1990, só se admitia a indexação de contratos com base na variação da ORTN – Obrigação Reajustável do Tesouro Nacional, depois da OTN – Obrigação do Tesouro Nacional, depois o BTN – Bônus do Tesouro Nacional, mantido no país, até meados dos anos 1990, o regime de indexador único permitido em lei para a atualização monetária de obrigações.

Naquela década de 90, para enfrentar a hiperinflação então disseminada no país de modo renitente, foi editado o referido Plano Real, programa econômico que, entre outras frentes, inovou, estruturalmente, a disciplina da correção monetária de obrigações contratuais, ao franquear aos particulares o direito de escolher, entre os vários índices disponíveis no mercado, o mais adequado a suas recíprocas conveniências.

O dispositivo central desse modelo de correção monetária, ainda hoje em vigor, está na Lei n° 10.192/2001, fruto de conversão da Medida Provisória n° 1.053/1995, nos seguintes termos: “É admitida estipulação de correção monetária ou de reajuste por índices de preços gerais, setoriais ou que reflitam a variação dos custos de produção ou dos insumos utilizados nos contratos de prazo de duração igual ou superior a um ano” (art. 2º).

Desapareceu, a partir de então, a presunção legal da inflação uniforme no país, comum a todos os contratos, apurada por um único fator de correção monetária autorizado em lei. Em lugar desse regime, instaurou-se a liberdade de escolha entre índices de preços distintos, de tal maneira que cada contrato passou a ter a sua “inflação específica”, variável em função do critério de cálculo do percentual de reajuste inerente ao indexador livremente eleito pelas partes.

Daí dizer-se que vigora hoje no país um regime de correção monetária cuja essência reside na concessão aos particulares do direito de escolher o medidor da inflação para seus negócios, a partir de um cardápio de índices de preços, ora de caráter geral, ora setorial, ora pertinente ao custo da produção ou dos insumos relacionados à contratação.

Quanto ao IGP, constitui fato amplamente reconhecido que, desde que admitido em lei como indexador de obrigações contratuais, há mais de 25 anos, o índice goza de inabalável prestígio junto à comunidade empresarial.

Fruto da ponderação de índices conhecida desde 1950 (60% para o IPA; 30% para o IPC; 10% para o INCC), o IGP é hoje o indexador ideal para empresários que pretendam proteger-se dos efeitos da inflação em perspectiva abrangente. Significa dizer, é um índice que reflete o movimento geral dos preços no país, aí computada a variação do custo de vida dos consumidores, assim como fenômenos que impactam a atividade empresarial, como a variação cambial e de preços públicos, custo de transporte etc., enfim, tanto circunstâncias recorrentes, como aquelas que, ainda que de forma episódica e sem data certa, se repetem, de tempos em tempos, na vida nacional.

Por certo, preferindo um indexador imune a esses eventos incertos no tempo, o empresário pode optar por índice com outra composição, escolhendo, por exemplo, indexador que reflita apenas a variação de preços de um segmento específico da economia, como o INCC da FGV, focado nos custos da construção civil, ou o próprio IPCA do IBGE, cuja pesquisa é centrada nos preços praticados nas famílias com renda de até 33 salários mínimos e residência nas principais capitais e zonas metropolitanas brasileiras.

Tendo optado pelo IGP, o impacto sobre o índice das “oscilações de commodities em mercados globais”, em vez de imprevisível, é consequência esperada, desejada e resultante, diretamente, da estrutura ponderada do indexador, que não se modifica desde 1950.

Em suma, sem que se aprofunde, neste espaço, nos meandros jurídicos da questão, quando se poderia demonstrar a inaplicabilidade da teoria da imprevisão ou da onerosidade excessiva no caso em apreço (descabimento dos arts. 317 e 478 a 480 do Código Civil), parece-nos válido concluir que, ao eleger o IGP como indexador de locação em shopping center, o empresário não desconhece que a oscilação do dólar impacta a apuração do índice. Mas, se desconhece e, ainda assim, contrata, não pode valer-se de sua deficiência para impugnar a cláusula contratual, eis que tal imperícia, nos negócios empresariais, constitui o que se pode chamar falha inescusável.

Note-se que a relação de causa e efeito entre o dólar e o IGP já ocorreu em outros momentos da economia nacional, sendo incabível a classificação do alegado “descolamento” entre IGP e IPCA como fenômeno imprevisível, para o fim de permitir que o lojista pleiteie a intervenção do Judiciário em negócio privado, visando ao afastamento da aplicação regular do reajuste contratado, pleito que transgride importantes princípios de direito privado, alguns recentemente reiterados na Lei da Liberdade Econômica, outros de há muito elevados à condição de garantia constitucional.

Ainda quanto ao pretenso “descolamento” de índices, cumpre mencionar que esse fenômeno, a rigor, não existe. Afinal, a convivência de indexadores distintos na economia tem por finalidade, justamente, a captura de movimentos de preços diferentes, com resultados desiguais, sendo óbvio que, se os índices sempre apresentassem variações próximas, seria supérflua a coexistência dos múltiplos fatores de correção monetária na economia.

De outro lado, força é convir que se a parte pôde contratar o IPCA, mas preferiu o IGP, não faz sentido que, no momento em que o indexador escolhido produz o resultado programado (isto é, detecta a oscilação dos preços afetados pelo dólar, por exemplo), o Judiciário determine a sua substituição justamente por aquele que, estando à disposição das partes no momento da contratação, foi por elas descartado.

Efetivamente, repita-se uma vez mais, caso as partes desejassem contratar indexador imune à variação cambial, poderiam contar com alternativas ao IGP, contratando, por exemplo, o próprio IPCA, cuja composição sofre impacto da variação cambial apenas de modo indireto e retardado, observada a dinâmica natural segundo a qual variações de preço detectadas em determinado índice tendem a ser compensadas, no curso do tempo, uma vez que a inflação primeiro captada não deixa de irradiar-se para os demais índices da economia.

A substituição do IGP por índice disponível no momento da contratação, sem que o acordo de vontades autorize a correspondente alteração no valor da prestação, constituiria, por certo, inaceitável alteração das premissas econômicas do contrato.

Essa gravíssima situação pode ser ilustrada com circunstâncias comuns no setor de shopping centers, como aquela em que o locador é um fundo de pensão que adota meta atuarial fixada em IGP, ou um fundo de investimento imobiliário com quotas remuneradas por IGP mais juros, ou ainda a sociedade empreendedora que opta pelo IGP para mitigar risco cambial a que esteja submetida, em razão de compromissos financeiros assumidos em dólar norte-americano, entre outras inúmeras situações. Em qualquer das hipóteses, a intervenção do Judiciário no negócio privado constituiria, repita-se, inaceitável alteração das premissas econômicas do contrato.

Por fim, é preciso lembrar que, não sendo um indexador exclusivo do setor imobiliário, admitir-se que o IGP ter-se-ia tornado inadequado para locações em shopping centers seria o mesmo que concluir que o índice não mais se presta para contratos de todos os segmentos da economia, como aqueles celebrados com o setor público, bancos, entidades de previdência complementar, incorporadoras, entre outros. 

À evidência, tratando-se do índice com maior presença nos contratos brasileiros, a impugnação do IGP não pode ser admitida sem profunda compreensão de seu papel em nosso regime de correção monetária, parecendo certo que, em contratos empresariais, como a locação em shopping center, nada justifica a intervenção judicial no negócio privado, para afastar a incidência de indexador conscientemente pactuado. 

José-Ricardo Pereira Lira é Sócio de Lobo & Lira Advogados

A opinião do autor não reflete, necessariamente, a opinião da Abrasce

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