A importância da constante atualização do instrumental jurídico dos shopping centers
Quando analisamos imagens ou lembramos de como funcionavam os shopping centers dos anos 1970 e 1980 em comparação aos empreendimentos desta década de 2020, percebemos que não se trata de clichê a qualificação do shopping center como um organismo vivo. De caixotes fechados a projetos arquitetônicos sofisticados, com iluminação natural, integrados ao ambiente externo. Centros de compras alçados à categoria de espaços de convívio e lazer entre amigos e famílias. Estruturas dedicadas cada vez mais às experiências, para além do consumo, agregando ao mix teatros, cinemas, auditórios, gastronomia, centros médicos, coworking, academias e spas. Atenção voltada à sustentabilidade, com esforços para a coleta de resíduos seletiva, implantação de bicicletários, telhados verdes, geração de energia própria e reúso de água pluvial. Parcerias com as comunidades do entorno, integrando o espaço do shopping a ações educativas, sociais e beneficentes. E a conscientização quanto à relevância da inclusão, do respeito à diversidade e ao bem-estar.
Um organismo que pulsa ao ritmo sincronizado de diversos atores: os desenvolvedores, empreendedores/locadores, a administração e os colaboradores do shopping center, os consumidores e os lojistas. Para que esta dinâmica funcione de modo coordenado, é necessário um instrumental jurídico complexo, com destaque para o contrato de locação, as normas gerais e o regimento interno. Enquanto o contrato de locação regula o uso dos espaços locados, as normas gerais e o regimento interno ditam as regras de funcionamento e de conduta no shopping center, de modo complementar, com aplicação destinada a todos os usuários do empreendimento.
O contrato de shopping center, para muito além de mero contrato de locação, é complexo e colaborativo. O sucesso do shopping depende de seus lojistas e o inverso é também verdadeiro.
A partir de novidades legislativas, mudanças de costumes, comportamento e tendências de mercado, a última década trouxe para os shopping centers novidades muito significativas, tanto conceituais como nas estruturas físicas. Exemplos concretos são a disseminação da agenda ESG, as medidas trazidas pela LGPD – Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709), a implantação de espaços verdes, usinas de reciclagem e o esforço para a adoção de soluções mais eficazes à resolução de conflitos, diante de um judiciário sobrecarregado.
Embora, de fato, a maior parte das providências e atitudes relacionadas a temas dessa natureza partam e sejam de responsabilidade da administração dos shoppings, é incontestável que seu sucesso é potencializado quando elas se espraiam para os lojistas.
Se um olhar atento à evolução dos shopping centers como modelo de negócio é essencial à sua perpetuação, o mesmo e atento olhar deve-se voltar, também, à relevância da constante modernização e atualização do instrumental jurídico. Afinal, se o shopping center é dinâmico, não é viável que os instrumentos jurídicos que o regulam sejam estanques e não caminhem no mesmo compasso. São os contratos de locação e as normas gerais/regimento interno, em última análise, que norteiam relações e possibilitam que o shopping funcione, sob a batuta de uma administração única e centralizada, de modo harmônico e saudável, assegurando a lucratividade.
Uma das formas de otimizar as relações contratuais entre locador e lojistas, na hipótese de indesejáveis litígios, com a redução do tempo de trâmite de processos judiciais, é a adoção, nos próprios contratos de locação, de regras voltadas a resolver os conflitos de maneira mais rápida e eficiente. Trata-se dos negócios jurídicos processuais, trazidos ao ordenamento jurídico pelo artigo 190 do Código de Processo Civil, a partir da alteração havida em 2015. Alguns exemplos de negócios jurídicos processuais aplicáveis aos contratos de locação são: (a) a fixação de um endereço certo do locatário para o recebimento de citações e intimações, fornecido espontaneamente, a fim de evitar nulidade de citação – inclusive com a possibilidade de informação de endereço eletrônico como meio oficial de comunicação contratual e autorização de comunicação pelo whatsapp, por exemplo, de ambas as partes; (b) definição pela contratação de perícia particular para substituir a perícia judicial (art. 471, § 3º, do CPC), tornando uma eventual necessária análise técnica menos morosa; (c) a possibilidade de oferta dos próprios créditos de titularidade do locador junto ao locatário como caução (art. 59, § 1º, da Lei 8245/91), no requerimento de pedido liminar para ações de despejo por falta de pagamento; (d) a renúncia recíproca quanto à audiência de conciliação e mediação prévia (art. 334 do CPC) já que, afinal, se as partes chegaram a juízo é porque certamente já esgotaram as etapas de negociação. Esses são apenas alguns exemplos, sendo relevante lembrar que tais acordos devem estar redigidos nos contratos de maneira clara, transparente e equilibrada.
Ainda na esfera das relações de locação, a customização dos contratos de locação é um desafio a ser enfrentado. Em decorrência de novos hábitos de consumo, cada vez mais voltados à omnicanalidade, não pode ser minimizada a importância da presença, nos shopping centers, de negócios que escapem ao conceito das tradicionais lojas físicas: espaços destinados ao depósito e à retirada de compras realizadas online, lojas conceito que funcionem como vitrines de produtos que estarão disponíveis à aquisição pelos mais diversos canais. Longe de ser uma tarefa fácil ou óbvia, a singularização dos contratos de locação demanda que cada empreendimento estresse e exercite as alternativas que melhor se coadunam às suas especificidades, regionalidades e, sobretudo, ao apetite e à disposição para receber novos e distintos modelos de negócio.
Sob a ótica social e de comportamento, a atualização do instrumental jurídico não é menos relevante. Ao analisarmos as normas gerais, por exemplo, quando a ordem do dia é a economia circular e o consumo consciente, talvez a tradicional vedação irrestrita à venda de “salvados e artigos de segunda mão” deixe de fazer sentido, cabendo exceções à regra geral. Atitudes discriminatórias são intoleráveis, seja nas áreas comuns ou no interior das lojas. Quanto às despesas rateáveis entre os lojistas, é natural que essas devam abranger os gastos relacionados à coleta e ao descarte seletivo de resíduos. Não é aceitável que determinado lojista faça uso indiscriminado dos dados de seus clientes, em desconformidade com a LGPD, enquanto o shopping investe tempo, recurso e tecnologia no tratamento responsável de dados pessoais. A postura e a forma de exposição do shopping center e dos lojistas, inclusive nas redes sociais, poderá alcançar o nome e a imagem de ambos, em situação de reciprocidade. Ainda que todas essas premissas pareçam lógicas, confiar tão somente no bom senso e na expectativa de uniformidade de atuação e comportamentos pode não ser o suficiente: é preciso externar valores, acordar expressamente os compromissos e as consequências decorrentes de desvios. Disposições contratuais e normativas que reforcem legislação específica passam a merecer lugar de destaque nas normas gerais e/ou nos contratos de shoppings que estejam comprometidos com agendas sociais, de governança e de sustentabilidade.
A falta de sinergia entre o instrumental jurídico e os objetivos que a administração do shopping center persegue tende a ser prejudicial à dinâmica do bom funcionamento de negócios com tamanha complexidade. É certo que os contratos de locação, em regra, são de longa duração e que, portanto, as atualizações do instrumental jurídico alcançarão os lojistas de modo lento e gradativo. É inegável, por outro lado, que o shopping center é um negócio idealizado e projetado para longuíssimo prazo. E o futuro chega quando menos se percebe. Nesse momento, se sobressairão e terão melhores condições de competividade os shoppings cujos instrumentais jurídicos conversem e estejam harmonizados com as suas práticas e valores: um organismo vivo, por inteiro.
*A opinião dos autores não reflete, necessariamente, a opinião da Abrasce.