O novo IVAR/FGV: um prenúncio para o futuro IVASC?
Em 1947, um competente time de pesquisadores da Bell Laboratories, inspirado na estrutura das colmeias, em formato hexagonal, criou a base para a primeira rede móvel. Na época, pouca gente deu importância ao que depois, como uma pedra jogada em um lago, ampliando ondas em todas as direções, viria a ser o fundamento para a revolucionária invenção de Martin Cooper: o telefone celular. Já conhecemos o fim dessa história, e como esse aparelho evoluiu para se tornar parte inseparável do mundo moderno. Ideias surgem todos os dias, o dia inteiro, em todos os lugares, e mesmo as mais geniais costumam ser subestimadas quando brotam. Afinal, enxergar o futuro é muito difícil, e quando o imprevisível se instala, o irreversível assume o comando sem ligar para nossas previsões.
O Índice Geral de Preços do Mercado (IGP-m), publicado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), é o mais adotado nos contratos de locação, e como é notório, embarcou, com a pandemia de Covid-19, em um foguete rumo ao espaço sideral. Consideradas as variações de 2020 (+23,14%) e 2021 (+17,78%), o índice ultrapassou espantosos 40% em apenas dois anos.
O mercado de locações não poderia ficar imune a tal disparada: locatários de todo o país buscaram o Judiciário para tentar a adoção compulsória de um índice alternativo mais suave. Felizmente, em prol da estabilidade, seus pedidos liminares têm sido, em sua maioria, rejeitados. E, em nome do bom senso, inúmeros acordos foram celebrados para limitar o aumento, e até para reduzir o aluguel nos casos em que a pandemia impactou de forma relevante o valor locatício do imóvel.
A celeuma sobre o IGP-m ainda está longe de terminar, e agora surge o novo IVAR/FGV – Índice de Variação de Aluguéis Residenciais, que foi obtido pela média ponderada da variação dos aluguéis residenciais nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Porto Alegre. A FGV utilizou como principal fonte as informações extraídas de cerca de dez mil contratos de locações, fornecidas pela empresa Quinto Andar. Paulatinamente, outras cidades devem entrar na base de dados. O IVAR apontou, para 2021, uma variação negativa de 0,61%, muito distante dos 17,78% apontados pelo IGP-m para o mesmo período. De onde vem tamanha discrepância?
O IGP-m é o resultado da média ponderada de três subíndices, cada qual com seu peso na conta: (i) 60% de peso para o IPA-m2, que verifica a variação de preço dos produtos vendidos no atacado pela indústria nacional e pelo agronegócio; (ii) 30% para o IPC-m3, que avalia a inflação em áreas como a educação, saúde, habitação, vestuário, lazer e transporte; e (iii) 10% para o INCC-m4, que mensura a oscilação de preços e custos de materiais de construção e mão de obra do setor. Como se vê, o índice normalmente utilizado pelo mercado locatício para o ajuste monetário dos aluguéis leva muito pouco em conta… os aluguéis!
Você já se perguntou por que esse descolamento entre a cesta utilizada pelo IGP-m e os dados específicos do mercado de locações é inconveniente? A resposta chega a ser intuitiva: é interesse de ambas as partes do contrato, locador e locatário, que o aluguel acompanhe, tanto quanto possível, a variação do mercado em que ele se insere. Fazê-lo não é apenas uma questão de justiça contratual; isso traz benefícios de médio e longo prazo para a relação, mantendo o equilíbrio econômico-financeiro da prestação, e reduzindo a necessidade de sua revisão. Imagine o quanto poderemos desafogar o Judiciário das discussões sobre a revisão do aluguel a cada três (ações revisionais) ou cinco anos (ações renovatórias), se construirmos um índice que seja capaz de refletir razoavelmente a variação própria do mercado. Só isso já é suficiente para justificar os aplausos para a ideia de criação do IVAR.
As primeiras críticas ao IVAR já surgiram. A amostragem é pequena? Sim. Ela é restrita, por se limitar a apenas quatro cidades, ignorando os demais mercados? Sim. Isso é razão para o abandonarmos? Claro que não. Sabe-se lá de onde vem a força de uma primeira impressão, e menos ainda para onde vai. Ideias são assim: no início, podem soar descomedidas, inadequadas ou desnecessárias, e até podem mesmo sê-lo. Porém, se as levarmos a sério e as aperfeiçoarmos, um mundo novo pode se abrir diante de nós.
Acabamos de dar a largada em uma maratona. Há muito a construir e evoluir. Mais cidades serão incluídas na cesta, e a quantidade de informações sobre contratos celebrados tende a crescer exponencialmente, tornando o IVAR cada vez mais preciso. Se hoje é prematuro adotá-lo na maioria dos casos, acredite: com o passar do tempo a utilização do índice, mesmo facultativa, tenderá a se tornar uma prática comum.
E antes de encerrar, temos que refletir sobre um possível IVASC5, ou sigla similar. Um índice que seria específico para os shoppings, os quais, como sabemos, são empreendimentos com uma dinâmica própria. O setor sempre foi competente para levantar dados, e seria de todo conveniente a criação e alimentação de um banco de dados nacional, unificado, que contenha as informações sobre os aluguéis praticados em todo o país.
O desafio do IVASC não seria pequeno, por algumas razões:
(i) o setor é heterogêneo: nos shoppings, os aluguéis não são fixados somente com base no local em que operam; o público-alvo, de padrão alto ou inferior, também interfere no perfil das lojas e nos preços fixados nos contratos;
(ii) há redes que, em razão de suas marcas e expertise, conseguem um desempenho superior, com aluguéis mais rentáveis, o que poderia gerar distorções;
(iii) geralmente o valor do aluguel é uma informação estratégica, que a administradora do shopping não deseja compartilhar com os concorrentes, o que torna essencial encontrar um meio de viabilizar o compartilhamento sem prejuízo ao negócio; e (iv) nem sempre interessa vincular a correção monetária à variação dos aluguéis do setor, e assim, a adoção do índice, se criado, deve ser facultativa, em respeito à liberdade de contratar.
Difícil? Sim. Contudo, o país nos dá exemplos diários de gente capaz de transformar o impossível em realidade. Nenhum índice jamais será rigorosamente perfeito, mas certamente será uma opção que poderá ser benéfica em muitos casos, melhorando o cardápio atualmente disponível.
Se começarmos agora, quem sabe daqui a não muito tempo tenhamos um big data dos shoppings, viabilizando a criação de um índice oficial específico, flexível, seguro, adequado, nacional e por região, cuja adoção, ainda que facultativa, poderá contribuir para a estabilização dos contratos, reduzindo drasticamente discussões e litígios, e poupando energia e prejuízos de lojistas e administradoras. O que estamos esperando?
André Abelha é mestre em Direito Civil pela UERJ e sócio do escritório Longo Abelha Advogados.
*A opinião do autor não reflete, necessariamente, a opinião da Abrasce.
2 Índice de Preços ao Produtor Amplo – Mercado. 3 Índice de Preços ao Consumidor – Mercado. 4 Índice Nacional do Custo da Construção – Mercado. 5 Índice de Variação de Aluguéis de Shopping Centers.