Reconhecimento facial: regulamentação, benefícios e cuidados
O uso desta tecnologia ainda é cercado de dúvidas, como privacidade e uso indevido dos dados coletados, por isso deve-se ter clareza quanto a finalidade dos dados coletados
Antes de adentrar no tema sobre a aplicação do uso das Câmeras de Segurança com tecnologia de Reconhecimento Facial, cabe esclarecer que o sistema de reconhecimento facial, trata-se de uma técnica de biometria baseada nos traços do rosto das pessoas, cujo a regra é que cada pessoa tem um padrão característico facial próprio, e tal técnica pode ser transmitida para computadores, mas para isso, precisa-se definir traços únicos que devem ser mapeados em códigos binários.
É importante destacar, que apesar de trazer benefícios, esse tipo de tecnologia traz a discussão sobre a exatidão dessa análise de imagem, pois as tecnologias de reconhecimento facial são tecnologias de inteligência artificial, cujos resultados, como todo modelo estatístico de probabilidade, não são precisos. Além disso, traz também discussão sobre a questão da privacidade, levantando debates sobre o controle social, a quebra de liberdade individual e se vale realmente a pena toda vigilância em prol da segurança que esse tipo de sistema tem o propósito de trazer.
O uso do reconhecimento facial e a LGPD
Como acompanhado com muita ansiedade por todos os setores, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), entrou em vigor em 18 de setembro de 2020, e embora a sua capacidade de fiscalização ainda não efetiva, visto que a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) ainda não foi constituída, já representa um significativo avanço pela especificidade da legislação, ainda que já houvesse um arcabouço jurídico sobre o tema.
Cumpre esclarecer, entretanto, que ainda não existe nenhuma lei federal que regule o uso do reconhecimento facial, a LGPD assim como outros dispositivos, tangencia a questão do reconhecimento facial em dispositivos que podem ser aplicados, como o uso de dados biométricos e sensíveis, e a aplicação em contexto de segurança pública.
Todas as organizações que coletam, armazenam, tratam e compartilham dados pessoais, tanto em meios físicos, como digitais, estão sujeitas a LGPD, e poderão sofrer penalidades se não cumprirem as regras previstas em lei. Além disso, há o impacto reputacional negativo que poderá gerar para a empresa em caso de eventual incidente. Por isso, é importante entender as definições da lei e saber como se preparar para estar adequado à legislação.
O uso do reconhecimento facial ainda é cercado de dúvidas relacionadas à privacidade e ao uso indevido dos dados coletados, e por esta razão, deve-se ter clareza quanto a finalidade dos dados coletados.
Por se tratar de dados biométricos, os registros utilizados para o reconhecimento facial, são considerados dados pessoais sensíveis, conforme menciona o artigo 5º, II[i] da LGPD, e exige uma atenção maior quanto à proteção, à prevenção aos riscos e ao tratamento de eventuais incidentes. Isso significa que tanto as empresas fornecedoras de soluções de reconhecimento facial, como as usuárias de tais soluções, devem revisar seus processos de governança e privacidade de dados.
É importante destacar, que embora o tratamento de dados biométricos esteja enquadrado em dados pessoais sensíveis no artigo 11[ii] da LGPD, caso a finalidade para o tratamento desses dados seja de segurança pública, podemos nos valer das exceções de tratamentos de dados pessoais, propostas pelo artigo da 4º inciso III alínea a[iii]. Entretanto, conforme orienta Rony Vainzof, mesmo com essa hipótese de exceção de tratamento, para mitigar riscos e avaliar a proporcionalidade do projeto, é importante que seja beneficiada pelo estudo da LGPD, em especial seus princípios: (i) adequação; (ii) necessidade; (iii) qualidade dos dados; (iv) segurança; (v) prevenção; e (vi) não discriminação[iv].
A preocupação dos especialistas é que os dados não sejam usados apenas para essa finalidade, conforme veremos adiante.
Da regulamentação do uso de reconhecimento facial
Conforme supramencionado, o uso do reconhecimento facial, ainda não possui legislação própria, mas existem alguns dispositivos que abarcam o tema, bem como projetos de lei em andamento no Congresso, como por exemplo: (i) projeto de lei 2537/2019, apresentado pelo Deputado Juninho do Pneu (DEM), cujo a ementa diz que todo estabelecimento que usa de reconhecimento facial, deve apresentar um aviso; (ii) projeto de lei 4612/2019 do deputado Bilbo Nunes (PSL), em que visa implantar e regular o uso da tecnologia na segurança pública, tratando de direitos, limites e boas práticas. Outros projetos de lei falam do reconhecimento facial em contextos específicos, como seu uso em lojas ou informação aos usuários. Em nível estadual, também existem contextos, como estádios de futebol e pedágios, mas não uma tratativa geral do uso da tecnologia.
Os benefícios do uso de tecnologia de reconhecimento facial
Destaco alguns casos que demonstram benefícios trazidos pelo uso de câmeras com reconhecimento facial, no que diz respeito a segurança da sociedade, como a utilização nos Shoppings Centers, que fazem uso desta ferramenta para prover segurança aos seus clientes, em razão da grande movimentação diária, evitando assim casos como furtos e outras situações de grande impacto aos clientes e frequentadores.
Houve um caso amplamente divulgado em que “a polícia do Rio de Janeiro, em 2018, contratou o sistema britânico ‘Facewatch’ com o propósito de identificar 1.100 criminosos ao cruzarem as câmeras de segurança” (KAUFMAN, Dora. Alerta: as tecnologias de reconhecimento facial estão nos ameaçando. Época Negócios. Disponível aqui)
Outro caso de grande relevância relacionado à segurança pública ocorreu no carnaval de 2019, quando o sistema de reconhecimento facial da polícia baiana localizou e prendeu um criminoso fantasiado de mulher. O reconhecimento é realizado comparando imagens aos bancos de dados da polícia, observe;
“O sistema de reconhecimento facial é um software que compara imagens de câmeras de segurança captadas em tempo real com imagens de bancos de dados da polícia. Quando duas imagens coincidem, um policial recebe uma mensagem do sistema para decidir se a pessoa será abordada ou não. O uso do equipamento, porém, é considerado controverso na Europa. Seus críticos dizem que não seria suficientemente preciso e feriria liberdades individuais” (SANTOS, Alexandre. Câmeras de reconhecimento facial acham criminoso no Carnaval de Salvador. Disponível em aqui)
A companhia aérea Gol fez um teste de 15 dias de reconhecimento facial em um dos seus embarques no Aeroporto do Galeão. Funcionários da companhia aérea fazem o cadastro da face dos passageiros por tablet, e em um totem com uma câmera de reconhecimento facial permite o acesso ao avião. “A expectativa é que, quando a tecnologia for aplicada para mais voos, o cadastro da face seja feito no próprio app da Gol. Inclusive, já é possível fazer o check-in com a uma ‘selfie’ no aplicativo da empresa”. (ORTEGA. João. Gol testa reconhecimento facial para embarque em voos no Rio de Janeiro. Disponível aqui)
O supermercado Pão de Açúcar do Grupo Pão de Açúcar (GPA), juntamente com a empresa de tecnologia Microsoft, realizou uma parceria para conseguir instalar novas tecnologias nos supermercados da marca. Algumas lojas do grupo serão abertas com diversas tecnologias diferentes como reconhecimento facial. Visando uma experiência melhor para os seus clientes.
A empresa Sem Parar, serviço de pagamento automático em veículos fez testes de reconhecimento facial para pagamentos de seus clientes. Essa tecnologia está sendo usada principalmente em estacionamentos. Dois dos shoppings que estão sendo realizado esse procedimento são Morumbi e Iguatemi, ambos em São Paulo. A intenção é que os clientes apenas se aproximem ao valet e sejam identificados. Os clientes poderão adicionar seus rostos no cadastro em totens disponíveis em estabelecimentos parceiros da companhia.
Do uso indevido do reconhecimento facial
Como mencionado anteriormente, existe uma grande preocupação dos especialistas e órgãos de proteção ao consumidor, acerca da finalidade que serão aplicadas as tecnologias de reconhecimento facial. Neste passo, trazemos como exemplo um caso amplamente divulgado acerca da notificação recebida por uma grande varejista de roupas, que em fevereiro de 2019, foi notificada pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC) para que explicasse a finalidade dos dados captados em uma de suas lojas, em São Paulo. No local, câmeras com tecnologia de reconhecimento facial captavam as reações dos clientes às peças expostas nas araras e, em paralelo, sensores identificavam suas preferências ao circularem pela loja, traçando assim um perfil de seus visitantes, sem a informação clara e adequada e sem o consentimento de seus clientes. Por essa e outras razões, em agosto de 2020, a varejista foi condenada pela Secretaria Nacional do Consumidor (SENACON), ao pagamento de multa por violações ao Código de Defesa do Consumidor (CDC).
Destaco ainda que o mesmo instituto – IDEC, ajuizou Ação Civil Pública contra a concessionária da Linha 4 (Amarela) do Metrô de São Paulo – a Via Quatro, uma vez que a Concessionária havia implementado câmeras de reconhecimento facial em portas interativas do metrô, analisando a reação dos usuários do serviço público às publicidades, mas sem o consentimento dos passageiros. A consequência desta ação, foi a liminar da Justiça Estadual determinando a suspensão imediata do uso da tecnologia, sob o argumento da falta de transparência sobre a finalidade, tratamento e uso das imagens.
Notem que em ambos os casos apontados acima, as decisões foram pautadas em legislação setorial, como Código de Defesa do Consumidor (CDC), que já versava sobre a Proteção de Dados, e podemos observar, que embora não exista uma legislação que verse exclusivamente sobre o uso do Reconhecimento Facial, existe uma preocupação acerca da finalidade que tal mecanismo é utilizado.
Da insegurança do uso da tecnologia de reconhecimento facial
Apresento por fim, casos de insegurança em razão da falta de regulação para a utilização da tecnologia de reconhecimento facial, onde pode-se citar gigantes da tecnologia que recuaram no desenvolvimento de software e dispositivos de reconhecimento facial, em razão da falta de legislação que regule o seu uso. Como por exemplo, a IBM que suspendeu de vez pesquisas ligadas ao mecanismo, e a Amazon e a Microsoft que paralisaram o trabalho, em razão da falta de regulação.
Chamo a atenção que todos os casos apontados acima carecem de uma legislação específica, para possibilitar segurança jurídica na utilização de tal tecnologia pelos seus usuários/consumidores, que neste caso, são a parte mais vulnerável da relação, e ainda para definir regras para as empresas que se beneficiarão financeiramente de tal sistema, pois atualmente, muitos modelos de negócio, estão baseados em dados, em captar e extrair informações valiosas de dados pessoais.
* Advogada, especialista em Direito Corporativo e Especialização em Direito Digital e Proteção de Dados – Membro da Comissão de Direito Digital da Associação Brasileira dos Advogados (ABA/RJ) e Membro da ANPPD – Membro da Comissão de Direito Urbanístico e Direito Imobiliário da OAB/RJ (CDUDI) – Membro do Compliance Women Committe (CWC)
A opinião do autor do artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Abrasce
[i] Art. 5º, II – LGPD – Dado Pessoal Sensível: dado pessoal sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religiosa, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural.
[ii] Art. 5º, II – LGPD – Dado Pessoal Sensível: dado pessoal sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religiosa, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural.
[iii] Art. 5º, II – LGPD – Dado Pessoal Sensível: dado pessoal sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religiosa, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural.
[iv] Art. 5º, II – LGPD – Dado Pessoal Sensível: dado pessoal sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religiosa, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural.