A recuperação empresarial da locatária autoriza a redução do aluguel?
Quando a empresa financeiramente abalada entra em recuperação, uma série de efeitos se abate sobre suas relações jurídicas, incluindo os contratos de locação
Algumas polêmicas envolvendo locatárias em recuperação já estão sendo superadas. Atualmente existe razoável consenso de que: (i) os créditos locatícios existentes na data do pedido se submetem aos efeitos da recuperação¹; (ii) as ações de cobrança e as execuções contra fiadores e outros coobrigados do contrato de locação não são suspensas²; e (iii) a ação de despejo é de competência do juízo cível³, permitindo-se, em regra, a retomada do imóvel ocupado pela recuperanda⁴, salvo se o estabelecimento for essencial para a sobrevivência da atividade empresarial⁵, cabendo a análise da essencialidade ao juízo universal da recuperação⁶.
Entretanto, uma relevante discussão permanece no ar: pode a recuperanda, com fundamento na sua dificuldade financeira, obter a redução do aluguel para pagar menos do que vale o imóvel?
Em 2020, o advento da pandemia de Covid-19 criou uma tempestade sem precedentes, virando o Brasil do avesso. Uma situação assim, tão extraordinária, gerou diversos impactos jurídicos, sobretudo nos contratos, sendo os principais:
- (i) a impossibilidade permanente, quando o cumprimento da obrigação se torna impossível por ato estatal ou determinada circunstância fática, como a inviabilidade de se manter um shopping center aberto aos locatários quando havia um decreto impondo seu fechamento;
- (ii) a frustração do fim contratual, caso em que o contrato, objetivamente, perde sua razão de existir, a exemplo do inquilino que alugou um imóvel por temporada no litoral de São Paulo para o pós-Carnaval de 2023, em bairro tragicamente devastado pela chuva histórica que caiu na região;
- (iii) a impossibilidade temporária, que inviabiliza o cumprimento da obrigação no tempo ajustado, e impede a caracterização da mora, como a paralisação de uma obra por decreto municipal por tempo suficiente para provocar a postergação da entrega de um imóvel em contrato built to suit, sem culpa do locador⁷; e
- (iv) o desequilíbrio superveniente, quando o sinalagma – proporção entre prestação e contraprestação – é chacoalhado pela alteração relevante das circunstâncias, e onde entram as figuras da rebus sic stantibus e da onerosidade excessiva.
Desde então, muitos locatários, alegando queda brusca de faturamento, se agarraram aos artigos 317 e 478 do Código Civil para pleitear a redução do aluguel, não para ajustá-lo a valor de mercado. O objetivo foi obter, por via oblíqua, um subsídio, um verdadeiro desconto sobre a prestação devida. As petições iniciais brandiram, em favor da locatária, a ocorrência de onerosidade excessiva. Afinal, ao menos do ponto de vista gramatical, é instintivo pensar que o pagamento dos aluguéis, em tal contexto, se torna um fardo pesado demais, um “ônus excessivo” para a devedora.
Porém, como já decidiu o STJ, em 2022, “a revisão dos contratos em razão da pandemia não constitui decorrência lógica ou automática, devendo ser analisadas a natureza do contrato e a conduta das partes – tanto no âmbito material como na esfera processual -, especialmente quando o evento superveniente e imprevisível não se encontra no domínio da atividade econômica das partes”⁸.
Sim, pois a redução brusca de faturamento e caixa, mesmo quando reconhecida judicialmente com o deferimento da recuperação, tem relação zero com o sinalagma contratual⁹.
Há situações excepcionais que comportam a revisão. O STJ, no julgamento do REsp 1.984.277, ao analisar pedido formulado por empresa de coworking, em razão da pandemia, decidiu que “considerando que a empresa locatária exercia a atividade de coworking e teve seu faturamento drasticamente reduzido, a revisão do contrato mediante a redução proporcional e temporária do valor dos aluguéis constitui medida necessária para assegurar o restabelecimento do equilíbrio entre as partes”¹⁰. No caso houve efetiva quebra do sinalagma, pois a pandemia afetou diretamente o objeto do contrato: se as pessoas trabalhavam de casa, era natural que as empresas não ocupassem o espaço do coworking, deixando de pagar por ele. Sublinhe-se, portanto, que a situação não tem relação com a saúde financeira da empresa, e sim com a atividade empresarial que foi a razão de ser do contrato de locação do andar ou do edifício.
De duas uma: ou o aluguel permanece razoavelmente ajustado ao valor de mercado, e a situação financeira da locatária é irrelevante; ou há desequilíbrio do preço, para mais ou para menos. Em ambos, o caixa da inquilina não é requisito do art. 19 da Lei de Locações. No Brasil, mesmo a empresa mais rentável do planeta tem direito à redução do aluguel em desajuste. A riqueza da locatária, contemporânea ou superveniente ao contrato, não permite ao locador pleitear, com base nisso, o aumento do aluguel. Por que o inverso seria verdadeiro? O enriquecimento ou empobrecimento da locatária é alteração subjetiva, que não descalibra o preço ajustado.
Em outras palavras, se houve perda do sinalagma, e estão preenchidos os requisitos legais, o locatário, financeiramente saudável ou em dificuldade, tem direito à redução. Idem para o locador que está recebendo menos do que vale o imóvel, pois o direito à revisão é de ambos.
Isso não significa que o sistema jurídico abandonou a empresa-locatária em crise à própria sorte. A Lei nº 11.101/2005 traz dois poderosos mecanismos em seu auxílio:
- (i) a recuperação empresarial suspende temporariamente a cobrança dos aluguéis vencidos¹¹ e, durante o stay period, não correm os juros de mora; e
- (ii) se o plano de recuperação for aprovado, ocorre, de uma só tacada, drástica e coletiva revisão dos créditos sujeitos à recuperação¹², e todos os credores, incluindo locadores, sujeitam-se a substancial alteração de seus créditos, com redução dos aluguéis existentes na data do pedido de recuperação, além de longo diferimento de seus vencimentos. Aqui, note-se bem, a existência ou não de desequilíbrio contratual superveniente é completamente irrelevante: o fundamento é, precisamente, a agrura financeira da recuperanda.
Como se vê, o ordenamento jurídico admite que a recuperanda, com fundamento na sua dificuldade de caixa, obtenha, por meio do plano de recuperação, a redução do aluguel. A onerosidade excessiva não entra na equação¹³. Entretanto, essa revisão é limitada aos aluguéis existentes na data do pedido de recuperação. Para os aluguéis constituídos no curso da recuperação, cujos valores estão alinhados com o mercado, não se podem invocar nem o art. 19 da Lei de Locações, nem os artigos 317 e 478 do Código Civil.
A crise financeira da locatária, enfim, não constitui fundamento para a redução dos valores a pagar, se o sinalagma contratual foi mantido. Não pode o Judiciário “realocar para o credor, ex post, sem precificação e sem fundamento legal, o risco do devedor”¹⁴, transferindo-lhe um prejuízo que não lhe pertence. Pacta sunt servanda. A expressão, tão antiga, permanece mais atual do que nunca, e em nome da segurança jurídica, não pode ser esquecida.
1. Conforme art. 49 da Lei 11.101/2005, submetem-se aos efeitos da recuperação “os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos” e, de acordo com a tese firmada no Tema 1.051 do STJ, “Para o fim de submissão aos efeitos da recuperação judicial, considera-se que a existência do crédito é determinada pela data em que ocorreu o seu fato gerador”.
2. Tese firmada no Tema 885 do STJ: “A recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das execuções nem induz suspensão ou extinção de ações ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória, pois não se lhes aplicam a suspensão prevista nos arts. 6º, caput, e 52, inciso III, ou a novação a que se refere o art. 59, caput, por força do que dispõe o art. 49, § 1º, todos da Lei n. 11.101/2005”.
3. O STJ vem julgando consistentemente neste sentido: “A jurisprudência da Segunda Seção caminha no sentido de que a ação de despejo movida pelo proprietário locador contra sociedade empresária em regime de recuperação judicial não se submete à competência do juízo universal da recuperação” (AgInt no CC n. 181.436/SP, relator Ministro Marco Buzzi, Segunda Seção, julgado em 3/5/2022, DJe de 6/5/2022).
4. Confira-se: “A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça se firmou no sentido de que nada obsta o prosseguimento de ação de despejo proposta por proprietário do bem contra empresa em recuperação judicial, não ficando, pois, configurado o conflito de competência” (STJ, 2ª. Seção, AgInt nos EDcl no CC 163.996/RS, rel. Min. Moura Ribeiro, j. 5/5/2020). Outro exemplo, do TJRJ: “O fato de a empresa locatária estar em recuperação judicial ou extrajudicial não configura óbice à ação de despejo, havendo prevalência do direito à propriedade sobre o princípio da preservação da empresa, não existindo chancela legal para que a recuperanda se utilize de imóvel, sem a devida contraprestação… A Jurisprudência da Corte Superior e deste Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro é firme no sentido de que a ação de despejo, movida pelo proprietário locador para retomada do imóvel locado à sociedade empresária em recuperação judicial, não se submete à competência do juízo universal da recuperação e não está sujeita aos efeitos da recuperação judicial” (TJRJ, 25ª CC, apelação 0021721-97.2019.8.19.0208, Rel. Des. Sérgio Seabra Varella, j. 27/01/2022).
5. A exemplo do seguinte acórdão: “Inquilina recuperanda que sobrevive do varejo, sendo certo que o fechamento de importante ponto comercial sem a prévia análise do juízo falimentar pode trazer consequências drásticas à recuperação judicial da empresa” (TJRJ, 16ª CC, AI 0063275-83.2021.8.19.0000 Rel. Des. Eduardo Gusmão Alves de Brito Neto, j. 07/04/2022).
6. Sobre a competência do juízo universal da recuperação para a análise da essencialidade: “Nos termos da jurisprudência desta Corte Superior, compete ao juízo da recuperação judicial a análise acerca da essencialidade do bem para o êxito do processo de soerguimento da empresa recuperanda, ainda que a discussão envolva ativos que, como regra, não se sujeitariam ao concurso de credores” (STJ, 2ª Seção, AgInt no CC 159.799/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 09/06/2021).
7. A impossibilidade é aferida objetivamente: se a conta do devedor, sem culpa sua, for indevidamente bloqueada por determinado tempo, inviabilizando a TED, o Pix, o pagamento de boletos e o saque em dinheiro, tem-se uma impossibilidade temporária, que afasta a mora. Porém, o pagamento de um aluguel não se torna objetivamente impossível pelo fato do devedor não ter dinheiro em sua conta bancária.
8. STJ, 4ª Turma, REsp 1.998.206/DF, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 14/6/2022.
9. O tema é complexo, e aqui é possível ter uma visão mais abrangente: ABELHA, André. Quatro impactos da Covid-19 sobre os contratos, seus fundamentos e outras figuras: precisamos, urgentemente, enxergar a floresta. Disponível em www.bit.ly/abelhafloresta. Acesso em 19.fev.2023.
10. STJ, 4ª Turma, REsp 1.984.277/DF, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 16/8/2022.
11. Como visto no início do artigo, mantém-se a possibilidade de cobrança do fiador, e, em regra, a possibilidade de despejo. O que se impede é o avanço sobre o caixa da recuperanda.
12. Definidos conforme art. 49 da Lei nº 11.101/2005 (estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos) e acórdão do STJ (REsp 1.841.960/SP, Min. Nancy Andrighi, j. 12.02.2020), segundo o qual estão sujeitos à recuperação judicial os honorários advocatícios sucumbenciais se a sentença que os fixou é anterior ao pedido de processamento feito pela recuperanda.
13. Outras figuras jurídicas complementares que podem vir a ser aplicadas em certas situações: (i) Abuso do direito (CC, art. 187): não basta ter um direito; ao exercê-lo, credor e devedor não podem exceder manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. Como visto, se um devedor deixou de cumprir sua prestação, a mora existe, e se não for purgada, o credor tem direito à resolução por inadimplemento. Contudo, é possível que no caso concreto o credor pretenda exercer esse direito de modo abusivo. Se isso ocorrer, sua pretensão deverá ser freada pelo juiz; (ii) Redução da cláusula penal (CC, art. 413): Aqui pode residir outra forma do juiz aliviar as consequências do inadimplemento do devedor em ruína, se ele comprovar que o descumprimento não pode ser atribuído a sua conduta, e que ele foi dragado por essa caótica situação em que o país se encontra. Pois a penalidade deve ser reduzida equitativamente pelo juiz se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio. A aplicação de tal regra deve ser feita excepcional e conservadoramente, e de modo fundamentado; e (iii) Boa-fé objetiva (CC, art. 422): a boa-fé objetiva impõe deveres anexos aos contratantes, dentre eles o de informar e de comportar-se de forma proba e colaborativa. O descumprimento de tais deveres pode ensejar consequências específicas. Há, inclusive, gente iluminada que defende a existência de um controverso dever jurídico de renegociar. Então, seja por concordar com a tese e se considerar obrigado, ou simplesmente por uma questão de sabedoria, não hesite: negocie, negocie, negocie, e fuja da loteria que um litígio representa.
14. NASCIMENTO, Alceu. O surto do COVID-19 é um evento capaz de ensejar a revisão ou a extinção dos contratos de locação? Disponível em https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-edilicias/322575/o-surto-do-covid-19-e-um-evento-capaz-de-ensejar-a-revisao-ou-a-extincao-dos-contratos-de-locacao. Acesso em 22.02.2023. O autor ressalta que “O inadimplemento generalizado dos contratos de locação, seguido por uma transferência dos prejuízos aos locadores teria efeitos devastadores no mercado de locação, tal como visto no mercado de incorporação imobiliária”.
*A opinião dos autores não reflete, necessariamente, a opinião da Abrasce.