
Ana Cañas, sempre fora da curva
Já são 20 anos de estrada e ela promete lançar o maior disco da sua vida em 2024, após o grande sucesso com a atual turnê em que homenageia o genial Belchior
A música entrou na vida de Ana Cañas em uma fase difícil quando ela precisava ganhar o pão de cada dia e vivia de fazer bicos. Certo dia, apareceu um teste para cantar em um bar e esse momento foi um marco: além de ser aprovada, descobriu esse dom e teve a certeza do que queria fazer dali por diante. Foram muitas dificuldades enfrentadas, mas ela chegou lá, das noites paulistanas para ser essa potência que todos conhecem. Hoje, ela vive o momento mais especial da sua carreira com “Ana Cañas Canta Belchior”, eleito o Melhor Show do Ano de 2022, pela Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA). O projeto, lançado na pandemia, nasceu de uma live e virou álbum, DVD e essa turnê – que já passou por mais de 120 cidades, apenas em setembro foram 15 shows, e a expectativa é atingir 150 municípios até o final do ano. É o sexto álbum de sua carreira.
Em 2024, esse show continuará por mais alguns meses e ela avalia essa fase como um presente.

“É o momento mais lindo da minha carreira e da minha vida, pela oportunidade que eu estou tendo de viajar o Brasil. O Belchior está vivo no coração das pessoas. A música dele possibilita um atravessamento poético, filosófico, metafísico e existencial, mas tudo é feito com muita simplicidade onde todas as pessoas de qualquer classe social, credo, raça e gênero podem entender o que ele diz. E isso é um grande presente para uma intérprete: de poder viver esse nível de emoção de poesia. Sou muito grata por ter feito uma live de canções do Belchior naquele dia da pandemia. Nem imaginava o que estava por vir. E como tudo foi baseado na corrente afetiva das pessoas, que nos apoiaram através de um financiamento coletivo. Fica uma grande lição de tudo o que vem do amor vigora de uma forma muito iluminada, no melhor dos sentidos”, conta.
Quando escolheu Belchior para fazer a live, ainda não tinha o conhecimento absoluto da obra e da pessoa do músico. “Antonio Carlos Belchior é um ser humano muito especial, um homem muito articulado, culto, que falava cinco línguas, um grande pensador, mas de uma humildade realmente muito tocante. Quando eu fui ver as entrevistas dele no YouTube e me aproximei dos filhos, Mikael e Camila, tive uma visão ainda maior da obra do homem que escreveu canções eternas e que alcançou a glória. E a glória é o coração do povo.”
Entre as músicas favoritas que canta no show, Ana considera três como verdadeiros abismos: ‘Coração Selvagem’,’Paralelas’ e ‘Como Nossos Pais’. “Os abismos nos oferecem a oportunidade de olharmos para nós mesmos porque todo mundo é luz e sombra, as sombras fazem parte da nossa vida e de quem a gente é. Canções que nos oferecem também as sombras são uma oportunidade muito especial de ter o entendimento maior da vida”, reflete.
Muito honrada em receber o prestigioso Prêmio da APCA, Ana destaca que essa conquista é de Belchior e para ele e espera que esse reconhecimento ajude a trazer o laureamento da obra do cantor e compositor, que é perene e atual. E é bem provável que o show agora ultrapasse as fronteiras, pois há conversas com contratantes dos Estados Unidos e de países da Europa.

Álbum novo vem por aí
Os planos para 2024 já estão sendo colocados em prática.
“Estou gravando um disco novo. Vou retomar o autoral e estou trabalhando com um produtor maravilhoso. Ainda não posso divulgar nada, mas eu posso prometer que eu vou fazer o disco da minha vida no ano que vem. Já estou fazendo o disco mais honesto, sincero e verdadeiro, falando de assuntos que nunca tive coragem de abordar e, agora, com essa trajetória do Belchior, essa coragem apareceu. O Belchior falou da parada dele, da vida e dos sentimentos dele com verdade absoluta, esse é o caminho, agora, chegou a minha vez de fazer isso.”
O quarto álbum de Ana, Tô Na Vida, lançado em 2015, foi o primeiro totalmente autoral.
Com tanto trabalho, percorrendo cidades grandes e pequenas, se apresentando em grandes teatros e em praças, sua rotina é muito corrida. Além dos shows e ensaios, tem que fazer vídeos para contratantes, produzir conteúdo para as redes sociais, planejar a estratégia da agenda, dar entrevistas… “É muito empenho. O tempo que sobra fico em casa com os meus cinco gatinhos e procuro ver algum filme. Dá para fazer só isso, mas estou feliz de trabalhar bastante. Posso dizer que eu aguardei 20 anos por esse momento desde que eu comecei a cantar.”

O DVD “Ana Cañas Canta Belchior”, disponível gratuitamente no YouTube, tem tido uma repercussão muito positiva desde o lançamento em fevereiro de 2023.
“Foi uma forma de agradecer o carinho das pessoas que recebemos na estrada e nos shows. Banquei o DVD do meu bolso, sozinha, e foi um custo alto. Recentemente, também gravamos o show de Sobral, cidade do Belchior. Se tudo der certo, sai um especial ano que vem. E eu sempre sou movida a isso – que as pessoas possam ter acesso aos conteúdos de arte e música. É um momento especial que eu gostaria de ter esse registro. Terá ainda o vinil ao vivo. Acho que a gente conseguiu alcançar esse Brasil profundo também por conta desses registros. É outra forma de chegar às pessoas.”
Em seus shows, Ana Canãs contagia o público de uma forma única. “Essa energia que rola é de amor mesmo. Eu estou muito feliz. Agradeço pela oportunidade de estar viva, de ter saúde e de estar fazendo o que eu amo. Eu costumo me preparar para os shows de uma forma muito simples, faço um aquecimento vocal, tomo uma cervejinha – uma só -, faço as minhas orações e me conecto. Está tudo calcado na verdade e na emoção, as pessoas sentem. O palco é o lugar onde você se desnuda, a alma parece. Então, eu busco me conectar com as melhores energias possíveis para que as pessoas possam voltar para casa felizes com algo bom dentro delas.”
O início
Apesar de todas as dificuldades, Ana Cañas sempre foi resistência. Cantou para sobreviver e passou por momentos de muita necessidade. Dormia num quartinho sem janela na cidade de São Paulo e os ratos lhe faziam companhia à noite, já que era possível ouvi-los andando pelo teto. Dividiu o pão com muitas profissionais do sexo que moravam no mesmo pensionato. “Foi bonito porque eu aprendi mais sobre elas, mulheres incríveis e muito generosas. Então, foi um momento que a música chegou para me salvar. Fazia vários bicos. Quando fui fazer um teste, cantei Billie Holiday, entendi o que eu queria fazer até o último dia da minha vida.”
Ela ainda sofreu assédio na adolescência dentro da família, algo que só conseguiu falar quase duas décadas depois. Perdeu seu pai, que era dependente alcoólico, e, apesar de nove internações, partiu em decorrência de uma cirrose. Mais nova, vivenciou o luto de perder o irmão, Leandro Cañas, vítima de afogamento no mar. Páginas dolorosas da sua trajetória, onde aprendeu a se fortalecer. “Há um entendimento da vida na dor. Ninguém é só alegre e feliz. Cada dor te ensina, então, poder cantar e trazer também esses aprendizados das dores é ressignificar. A arte e a música têm esse poder. Belchior dizia: “Pela dor eu descobri o poder da alegria”. E é exatamente isso.”
Ana sempre traçou seus objetivos com determinação e é obstinada em buscar seus sonhos. E carrega isso até hoje. Sempre foi uma menina sonhadora e com personalidade forte, que sabia o que queria e desapegada do dinheiro. “Para mim, realmente dinheiro é só um veículo de felicidade, de promover alegrias, não tem essa de ficar juntando grana.”

E ela sempre se espelhou em gigantes da música como Rita Lee, Elis Regina, Milton Nascimento, Gilberto Gil… “Peguei muito na mão dessas pessoas subjetivamente.” Contou ainda com o incentivo de que está ao redor como seu irmão, sua mãe, seu pai – que ficou muito feliz quando a viu cantar – e de namorados passados.
“Acredito ainda que, quando a intenção é positiva, os bons espíritos nos ajudam, nos fortalecem e nos dão ânimo para seguir em frente. A minha avó, dona Adelaide, é uma grande inspiração para mim. Sobrevivente da Guerra Civil espanhola, cruzou os Pirineus a pé no inverno, viveu exilada na França e veio para o Brasil de navio. Ela viu o pai ser assassinado em praça pública quando ela tinha 7 anos por ser republicano democrata. Ela cantava ‘La vie en Rose’ todos os dias e eu entendi que era uma música que ajudava ela ressignificar as dores que tinha vivido. Ela enxergava a vida com alegria e gratidão.”
Ana Cañas também já teve a oportunidade de cantar com grandes nomes como Ney Matogrosso, Rael, Nando Reis, Lenine… e tem uma admiração por muitos artistas que alcançaram o sucesso como Marisa, Zeca Pagodinho, Ludmilla… Se pudesse eleger nome para cantar junto em algum momento , ela não hesitaria em escolher David Grohl, vocalista e baterista do Foo Fighters. “Eu adoro o David Grohl, adoraria um dia cantar junto.”
Lugares abertos
Com espírito livre, Ana sempre prefere lugares abertos e é assim também quando precisa ir ao shopping. Prefere os que contam com áreas ao ar livre com paisagismo, incidência solar e presença da água. “Gosto desses formatos assim que são mais naturais e menores.” E guarda uma recordação da infância do Shopping Iguatemi São Paulo. “Eu tenho um apego com aquele relógio do Shopping Iguatemi. Quando era criança e, as poucas vezes que eu fui ao Shopping Iguatemi, me lembro que ‘pirava’ naquele relógio de água verde, parecia sair de um filme como “A História Sem Fim”. Essa obra à que ela se refere foi projetada pelo físico e artista francês Bernard Gitton e é constituída por globos de vidro soprados à mão, discos, tubos e cinquenta litros de água colorida misturado com metanol e, desde 1982, está na Praça Iguatemi.
Quando está em São Paulo, precisa ir ao shopping para resolver ou comprar algo ou ir ao cinema, como mora próximo à Avenida Paulista, há muitas opções, mas frequenta mais o Jardim Pamplona. Mas o bom mesmo é vê-la brilhar no palco sendo verdadeiramente Ana Cañas.
