MAI/JUN 2023 - Edição 247 Ano 36 - VER EDIÇÃO COMPLETA

Kobra, sem fronteiras na arte de se manifestar

7 de junho de 2023 | por Solange Bassaneze / Fotos: Divulgação
Os murais do artista penetram o olhar do público, comunicam e transformam
Mural Fraternidade, Liberdade e Igualdade Foto: Gladistone Campos

Final da década de 1980, um aluno que ganha o apelido de Kobra pelos colegas por ser muito bom em desenhar, um filho que pinta as paredes de casa sem o consentimento dos pais e uma sociedade que não consegue ter um olhar para artistas de ruas sem preconceito. Adolescente de família humilde da periferia da região do Campo Limpo, zona sul da cidade de São Paulo, Kobra começou a usar o ambiente escolar para se expressar, o que gerou conflitos, não demorou para que se identificasse com pichadores, grupo em que se sentiu inserido, e assim passou deixar sua marca por onde passava na principal metrópole do país, às vezes, com sprays ou tintas feitas à base de cal. Aos 17 anos, foi obrigado a sair de casa e se sustentar sozinho, um momento difícil, que o levou à depressão. 

Conheceu a arte do graffiti através dos livros e buscou mais conhecimento. Como tinha que ganhar o próprio sustento, ainda não conseguia transmitir as mensagens que gostaria, porque era preciso pintar o que lhe haviam solicitado. Nessa época, Kobra já tinha consciência dos problemas que estavam escancarados na sociedade e presentes nas ruas e na periferia, mas quase nunca discutidos. Novas oportunidades surgiram e ele conquistou seu espaço. O passado de Eduardo Kobra ainda na infância e na adolescência faz parte do seu legado, pois suas obras espalhadas por mais de 35 países trazem mensagens com as quais sempre se conectou, sendo antirracistas, pacifistas, de tolerância, de respeito entre os povos, em defesa do meio ambiente, na luta pela liberdade… Somente nos Estados Unidos, já foram mais de 50 painéis pintados, sendo que 22 podem ser vistos na cidade de Nova York. O último, realizado fora do Brasil, foi na República de Benin, África. 

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Com 700 m², o mural em Benin exalta a coexistência e a tolerância e é o segundo trabalho de Kobra na África 

Com uma genialidade única, repleta de sensibilidade, ele consegue fazer com que sua arte ganhe a atenção e a apreciação do público, o entendimento, a reflexão e a mudança. E isso acontece da forma mais democrática possível, estando acessível para todos, sem exceção, nas ruas, avenidas, estradas e até em montanhas, mas também presente em museus e galerias. 

De acordo com o muralista, seu trabalho é fruto da dedicação de anos e de muita persistência e insistência. E isso tem reflexo também na quantidade de convites que recebe de diferentes partes do Planeta. Por isso, tem como foco a superação. “Tento dar sempre o meu melhor dentro das minhas possibilidades. Conforme os anos vão passando, adquiro mais conhecimento, mas isso não facilita o caminho, eu tento me aperfeiçoar e estudar mais. Sigo utilizando os muros para passar as mensagens nas quais acredito. É sempre uma honra e um privilégio receber esses convites como brasileiro, que veio da periferia.”

Ao mesmo tempo, avalia como uma oportunidade de crescer, aprender e de melhorar como ser humano, pois consegue ver de perto as realidades de cada país. ” Em uma semana, estou em um país riquíssimo e, na outra, as pessoas moram em um chão de terra e não têm água, luz e absolutamente nada para comer. Isso me deixa profundamente triste, sentido e abalado. O mundo mudou pouco ou praticamente nada, quando se trata de dinheiro e poder. Até os dias de hoje, há situação de escravidão, pessoas morando nas ruas e tudo mais.” É esse lado humano que guarda na memória de onde já levou sua arte.

Autodidata

As ruas sempre foram sua principal escola e, nos muros, aperfeiçoou suas técnicas. Com uma infância e juventude na periferia, presenciou cenas de violência, viu a criminalidade ao seu lado, sofreu preconceitos e discriminação, passou por dificuldades financeiras e enfrentou palavras de ofensa… “Tudo isso foi me moldando e construindo o alicerce pelo qual hoje eu construí a minha história, baseado naquilo que eu tive que ser resistente e resiliente. Não tem uma divisão do que eu sou, o meu trabalho, as minhas pinturas, a minha vida pessoal, os meus valores e princípios. Os temas estão intimamente ligados a tudo o que vivi, mas, claro, que, conforme tenho mais possibilidade de viajar, vejo que muitos problemas que eu vivenciei ocorrem em diferentes escalas no mundo todo. Então, eu sigo falando de todas essas desigualdades.”

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Chico e Ariano, em São Paulo (SP) Foto: Fernando Tatsukawa
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Riquezas de São Luís, na cidade de São Luís (MA)
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Coexistência – Memorial da Fé por todas as vítimas do Covid-19, São Paulo (SP) Foto: Felipe Del Valle

Entre tantos problemas, Kobra usa seus murais para conscientizar as populações. Para que possa colocar suas ideias em prática, ainda depende de vários fatores, desde o formato da parede até as permissões do poder público. “Depois do mural da sede da ONU (Nova York, EUA), muitas portas estão se abrindo nesse sentido. O principal não é a pintura, mas a mensagem. Conforme meu trabalho fica mais conhecido ao redor do mundo, as pessoas acabam disponibilizando os espaços dentro das temáticas que venho desenvolvendo.”

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Painel na sede da Organização das Nações Unidas, inaugurado em setembro de 2022 | Foto/Divulgação Ben Lau

Kobra foi um dos precursores do movimento de street art no Brasil e teve que romper muitas barreiras. “O inusitado foi de as pessoas não aceitarem desde o começo porque se tratava de arte. Eu sempre renunciei às questões das drogas, crimes, da violência que me foi proposta, sempre pensei em estar nas ruas com o objetivo de pintar. Foi muito pesado e difícil. Com o passar dos anos, ficou mais claro que era uma manifestação artística como tantas obras. Tenho muito orgulho de ter sido um dos primeiros, desbravador de toda essa dificuldade e das mentes no sentido de mostrar que não há diferença entre a arte que está na rua da que está em um museu ou uma galeria. A arte vem de dentro.”

O trabalho

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Etnias – Todos Somos Um, em Sandefjord, Noruega

Muito requisitado, Kobra conta com o apoio de uma equipe para entender do que se trata cada solicitação. Em determinado momento, ele entra nessa conversa para entender aspectos de criação. No caso de pedidos internacionais, isso exige que ele faça uma imersão na história do país com muitas pesquisas, que envolvem desde informações obtidas com pessoas até visitas a livrarias e bibliotecas. “Depois desse levantamento histórico, faço os esboços, associando com os fatos e com aquilo que me interessa.” Depois dos resultados, passa a transformá-los em uma sequência de imagens um pouco mais elaboradas e, com a arte completamente resolvida, faz uma tela antes e aplica os testes de cor e tudo mais. Por ser uma peça única, acaba indo para alguma galeria ou algum colecionador. Depois ainda é realizado um levantamento relacionado aos equipamentos, materiais, logísticas, segurança do trabalho, hotéis e alimentação. Quando tudo está organizado, viaja para executar mais uma obra.

Alguns dos mais de 3 mil murais já feitos foram bem desafiadores, pois, muitas vezes, é preciso lidar com grandes dimensões, intempéries e, claro, elevadas alturas.  “O Muddy Waters, em Chicago, foi um dos trabalhos mais difíceis. O clima estava gelado com um pouco de neve e a gente pintou com aquele frio absurdo com os dedos congelando. Os murais que entraram para o Guinness (Etnias – Todos Somos Um, com cerca de 3 mil m², e Mural do Chocolate, com 6 mil m²) foram bem complexos por causa da proporção, assim como o prédio com 93 metros de altura no Brasil.”

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Mural Etnias – Todos Somos Um, no Rio de Janeiro, entrou para o Guinness World (RJ)

Presente e futuro 

O artista urbano ainda tem muitas ideias na gaveta. “Tenho, pelo menos, 1 mil desenhos diferentes que eu nunca realizei, pode parecer um número muito alto, mas, para cada projeto, faço dezenas de estudos e, depois, acabo reciclando e reutilizando.” Com isso, tem inúmeras criações que quer realizar, incluindo projetos sociais em grandes escalas pelo mundo e exposições.

Para 2023, há vários, mas o carro-chefe é o Instituto Kobra, fundado em 2020, que ganhará uma sede na cidade de Itu, interior paulista. “Queremos construir um espaço adequado para poder trabalhar com crianças e jovens e também artistas de todo o mundo. O foco será street art, mas com abertura para outros movimentos artísticos. Temos realmente grandes sonhos, colocados por Deus no meu coração, mas preciso de apoiadores com olhar de vanguarda para nos apoiar porque queremos entregar isso com o carinho, o amor e a qualidade que a comunidade merece.”

Esse ano, o artista fez uma collab, em parceria com Yuool, com uma edição limitada de calçados, em que os recursos estão sendo utilizados para a implementação da sede. Por uma questão de escolha, realizou pouquíssimas collabs ao longo da carreira, mas essa foi especial por estar alinhada ao Instituto. No entanto, não faltam convites de marcas.

E isso se repete em relação às exposições. Ele já recebeu convites de empresas nacionais e internacionais e acompanha o movimento dos eventos imersivos, mas adianta que ainda busca encontrar um caminho. “Já fiz pequenas mostras e estou me preparando para fazer uma grande exposição itinerante pelo Brasil. Com certeza, a imersão estará envolvida. Estamos estudando ainda porque tem que ser muito bem pensado já que é algo que não dá para fazer muitas vezes na vida, tem que ser certeiro.”

O renomado profissional também ainda dá palestras e os temas mais solicitados são sobre sua história de superação. Preocupado também com a conservação dos painéis, mantém ainda o projeto Arte de Restaurar. “Posso falar seguramente que 80% do que eu já fiz não existe mais, foi apagado e ficou eternizado pela fotografia e na memória das pessoas, mas gostaria que fosse diferente, que meu filho e as próximas gerações pudessem ter acesso não só do meu trabalho, mas de tantos outros artistas que pintam nas ruas. As obras no museu precisam ser periodicamente restauradas, nas ruas, isso não é diferente.”

Em shoppings

O Shopping Barra tem em sua fachada um painel de Santa Dulce dos Pobres, e o WTC São Paulo, complexo multiuso, um mural em celebração à paz e a união dos povos com vencedores do Prêmio Nobel, como Albert Einstein, Nelson Mandela, Malala Yousafzai, Madre Teresa de Calcutá e Dalai Lama, ambos assinados por Kobra. “Quando meus princípios e objetivos são respeitados, eu não vejo problema em ver o meu trabalho em ambientes comerciais. Nos casos desses dois murais, eles foram considerados dessa maneira.  Quando recebo um convite e tenho essa liberdade criativa, fico completamente aberto para poder trabalhar e dialogar e trazer essas obras porque, afinal de contas, são espaços onde as pessoas estão.” Kobra tem ainda um projeto itinerante pelo Brasil e, talvez, passe também por alguns shoppings, mas ainda está em fase de organização. 

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Olhares da Paz, no Boulevard WTC, em São Paulo (SP)

Considera ainda uma atitude de vanguarda os shoppings que veem sentido em levar os artistas de rua para seus malls. “Traz visibilidade, apoio, incentivo e recursos para eles.  Por outro lado, oferece esse deleite para o público que visita os shoppings. Os painéis nas ruas são um antídoto para poluição, estresse, violência, caos urbano… Dentro de um ambiente mais restrito como um shopping, isso também tem o seu peso porque se trata de espaços democráticos. Os shoppings fazem parte do cotidiano e da história da cidade.” Ele afirma que morava exatamente entre o Shopping Eldorado e o Iguatemi São Paulo e costumava frequentá-los em muitos dias para almoçar, jantar, resolver algo e até mesmo para levar seu filho em alguma exposição, que estava acontecendo.

Documentário

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Foto: Patrícia Pontes

Lançado em novembro de 2022, ‘Kobra – Auto Retrato’, da diretora e roteirista Lina Chamie, agora está disponível em plataformas de streaming, e retrata a trajetória da artista desde a infância até o reconhecimento mundial, sendo uma verdadeira fonte de inspiração. O filme ainda traz várias reflexões assim como suas obras, que não importa onde estejam, fazem as pessoas pararem, observarem, refletirem e quererem fazer parte da mudança.

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