
Prestes a completar 80 anos, maestro João Carlos Martins é mais uma vez exemplo de superação
Após 22 anos, ele testa luvas biônicas e volta a tocar piano com todos os dedos
Uma lágrima. Foi essa a emoção que o maestro João Carlos Martins sentiu ao sentar no piano e poder tocar com todos os dedos após 22 anos. Esse sentimento não foi compartilhado com ninguém. Ele quis ficar sozinho na sala de sua casa na hora em que foi testar as luvas biônicas, criadas pelo designer industrial Ubiratan Bizarro Costa.
“Na hora em que encostei os dez dedos no teclado, a expressão não foi com palavras, foi uma lágrima. Vi que teria um longo caminho a percorrer. A primeira etapa é a pequena evolução na técnica pianista e a segunda é a digitação. Se a cada dia eu conseguir progredir um milésimo de segundo, já é uma vitória. Tem dias que evidentemente fico um pouco deprimido porque acho que não vou chegar lá, mas tudo indica que deu certo”, detalha o maestro.

A primeira apresentação para o público com o uso das luvas aconteceu em 2020, no aniversário de 466 anos da capital paulista, com a Orquestra Filarmônica Bachiana Sesi-SP no Theatro Municipal. Essa foi a primeira luva testada por ele. Nos anos 1960, chegou a utilizar dedeiras de aço, mas chegavam a deixar manchas de sangue nas teclas.





(Fotos: CBN / Ronaldo Gutierrez)
Ele usa as luvas o dia todo. “Na lesão cerebral que tive, o hemisfério da fala, do pensar e do andar interferiu nas mãos. A cirurgia, realizada por Paulo Niemeyer, fez sucesso durante quatro meses, depois o problema degenerativo do cérebro venceu a batalha. Agora, as luvas estão acostumando o cérebro também a não interferir no hemisfério da fala e das mãos”, conta.

Além do acidente em Nova York durante um jogo de futebol, em que perdeu o movimento da mão direita, mas conseguiu tocar novamente, o maestro teve LER (Lesão por Esforço Repetitivo), depois, sofreu uma lesão cerebral durante um assalto na Bulgária. Neste momento, ele começou a tocar apenas com a mão esquerda. No início dos anos 2000, enfrentou um tumor e também perdeu o movimento desta mão. Neste momento, recomeçou e foi estudar regência. Aos 79 anos, é um dos maestros mais respeitados do mundo e a maior referência brasileira.

“Já fiz 24 operações, então, tive 24 momentos de superação. Interrompi a carreira duas vezes, mas sempre ficava com um cadáver enterrado no peito e isso durou 22 anos. Agora, estou feliz em tentar novamente o piano”, conta.
Sua dedicação é realmente admirável. Ele mudou toda sua rotina para estudar ainda mais. “A dificuldade de virar a página fez com que eu memorizasse tudo o que vou reger. Neste ano, resolvi o seguinte: já que fizeram até um robô para virar a página para mim, vou dedicar muito mais tempo para estudar piano do que para memorizar músicas para orquestras. Com isso, a minha rotina tem sido um estudo de quatro a cinco horas de piano por dia, mas é um estudo muito lento. Tanto que levei um piano mudo para casa para não incomodar os vizinhos.”
Aniversário de 80 anos
No dia 25 de junho de 2020, o maestro completará 80 anos e escolheu um lugar muito especial para festejar a data. “Mais do que celebrar meu aniversário será a comemoração dos 60 anos da minha estreia no Carnegie Hall, em Nova York. Vou reger e, se Deus quiser, no final tocarei com as luvas. Nunca toquei no Carnegie Hall sem estar com a lotação esgotada nem no Lincoln Center. Pode ser que dê certo novamente”, brinca. O apresentação está agendada para outubro.

Rica biografia
A trajetória do maestro já foi contada em documentários, filme, peça de teatro, livros e enredo de escola de samba. No ano passado, ele escreveu a obra ‘João de A a Z’, que retrata as principais lições que ele aprendeu ao longo de sua vida. Mas qual é a mais importante? É a letra E de esperança, segundo ele. “No momento em que você não perde a esperança, você tem um caminho longo pela frente. Agora, no momento em que a esperança desaparece da sua vida, daí, você pode realmente entender a palavra aposentadoria.”

No mall
O regente também tem uma relação de longa data com os shopping centers. Foram inúmeros concertos que pararam os corredores do primeiro ao último piso. Além disso, cinco shoppings já escolheram fazer a decoração de Natal, baseada em sua vida.
“Me sinto muito orgulhoso de ter sido tema do Natal, inclusive, no maior shopping da América Latina, o Aricanduva. Cada vez mais os shoppings devem ter essa relação com a música. Qualquer contribuição que possam dar para a cultura do Brasil é válida. Por exemplo, um shopping com teatro está contribuindo para a música, as artes cênicas, os musicais…”, garante.
O seu shopping preferido é o Iguatemi São Paulo. “É o que fica mais fácil para mim, mas, atualmente, tenho dedicado meu tempo apenas aos estudos.”
Redes sociais
Depois de interpretar João Carlos Martins no filme ‘João, o Maestro’. Alexandre Nero convenceu o maestro a abrir uma conta no Instagram. Desde então, ele posta os trabalhos que faz no Brasil e no mundo e relembra ainda alguns momentos da sua carreira.
O regente tem um carisma tão grande que as pessoas se sentem íntimas dele e esse sentimento se dá em todas as esferas sociais, desde a elite até as menos favorecidas. Ele e sua orquestra se apresentam em diversos lugares e levam a música também para as comunidades carentes. Em fevereiro, por exemplo, foi tocar em um acampamento para os refugiados venezuelanos, em Roraima.
Para ele, um dos momentos mais especiais, foi quando jovens em liberdade assistida deixaram na portaria do seu prédio um bilhete com a seguinte frase: “Tio Maestro, a música venceu o crime. Isso é um demonstrativo da dimensão do trabalho que faz”. “Já atingimos quase 17 milhões de pessoas ao vivo com os nossos concertos, que tem Bach, Mozart, Beethoven e Brames. No final, o público é como o do Rock in Rio”, admite.
Samba
Em 2019, o maestro João Carlos Martins parou a Vila Madalena, bairro da zona oeste da cidade de São Paulo, com um concerto durante o Carnaval. “Tudo vem de Bach na música ocidental e esse momento foi bárbaro porque todos os blocos fizeram silêncio durante meia hora, respeitando o maior compositor de todos os séculos”, relembra.
Neste ano, o maestro voltou ao Sambódromo do Anhembi no desfile da escola de samba Vai-Vai. “Pisei no Sambódromo pela primeira vez em 2011 quando a Vai-Vai foi campeã com o enredo ‘A Música Venceu’. Como no ano passado caiu para o Grupo de Acesso, depois de nove anos, para devolver o carinho que a comunidade teve comigo, resolvi reger a bateria com o mestre Tadeu.” E o presente deu sorte. A escola ganhou a competição e passou para o Grupo Especial novamente.

(Foto: Fernando Mucci)
Discípulo de Villa-Lobos
O projeto ‘Orquestrando o Brasil’, baseado no voluntariado, completará dois anos e foi criado para realizar um sonho de Heitor Villa-Lobos, que queria fechar o Brasil em forma de coração. “Ele tinha uma frase: ‘Não é um público inculto que vai julgar as artes, são as artes que mostram a cultura de um povo’. Só que na época dele não tinha televisão nem internet. Com a exposição que tenho na mídia, é minha obrigação carregar essa bandeira e realizar o sonho de Villa-Lobos. A minha carreira como pianista foi fantástica assim como está sendo como maestro, mas perto dos 80 anos, achei que seria a hora de tentar deixar um legado. Se eu vou conseguir, não sei, mas vou me esforçar para isso”, assegura.
A plataforma digital visa disseminar conteúdos e oferecer capacitação para regentes e músicos. Ela dá o apoio para que com a ajuda da comunidade local se possa liderar um movimento de expansão ou consolidação deste trabalho. Ao longo de quase dois anos, entre milhares de crianças, o projeto encontrou, pelo menos, dez crianças, segundo o maestro, que são diamantes a serem lapidados. “Se é aluno de piano, eu mesmo dou aula. O importante é dividir no projeto as crianças em quatro grupos: os que podem fazer parte de um público, os que podem ter a música como hobby, os que podem virar profissionais e os diamantes a serem lapidados”, detalha.
Nas escolas
No Brasil, as aulas de música da grade curricular mesmo em instituições privadas poderiam ser muito mais bem exploradas. Geralmente, o conteúdo é superficial. Na época do compositor Villa-Lobos, ele conseguiu inserir o canto orfeônico nas escolas. “Se formos analisar, Deus deu para o homem a voz para a melodia; as mãos e os pés para o ritmo. Então, eu digo que a música é a régua do mundo. Se um governo vai bem, todo mundo fala que funciona como uma orquestra. Se tem uma manifestação na rua, o governo diz que tem uma orquestração contra ele. Então, a música une fronteiras e nações. Dessa forma, vejo que, depois que acabou o canto orfeônico nas escolas, a música passou por vários problemas no Brasil e está voltando só agora. Estudos mostram que a criança que tem iniciação musical tira notas melhores”, considera o maestro.
Os preferidos de João Carlos Martins
