A escuta ativa e o olhar para as pessoas fizeram com que Paulo Borges, criador e fundador da São Paulo Fashion Week, rompesse todas as barreiras e transformasse o evento em um dos maiores e mais influentes das semanas de moda do mundo
Aos 18 anos, o criador e fundador do São Paulo Fashion Week (SPFW), Paulo Borges, saiu de sua cidade natal, São José do Rio Preto (SP), para estudar Ciências da Computação e Comércio Exterior na capital paulista. Dois anos depois, em 1982, ele ajudou um amigo a fazer um desfile, mas, como bom ariano, acabou capitaneando o evento. A partir desse dia, sua conexão com a moda teve início, sem ele mesmo saber. Um casal de amigos viu em Paulo Borges tudo o que, à época, a diretora da Vogue, Regina Guerreiro, buscava em um assistente. Eles o indicaram e a entrevista aconteceu.
Ele recorda que foram mais de duas horas de conversa, ou melhor, interrogatório, mas que o deixou completamente fascinado por ela e pela paixão que Regina tinha por seu trabalho. “Era mais do que uma profissão, era uma religião. E aquilo me pegou: queria ser louco por alguma coisa como ela. Aceitei o trabalho por ela e não pela moda. Ser assistente de uma diretora da Vogue me chamou a atenção. Eu tinha uma bíblia de ensinamentos para seguir. Fiquei três anos com ela, que foram maravilhosos”, relembra o idealizador do SFPW.
Entre os ensinamentos compartilhados, a jornalista dizia que era preciso não somente ser apaixonado, mas ter a moda como única coisa da vida. Não existia família, namorado… “Como eu não sabia quem era a Regina Guerreiro e o que ela significava, achava aquilo muito desafiador, mas em nada amedrontador. Depois de 3 meses, percebi que as pessoas tinham pânico dela, era uma relação de amor e ódio porque ela sempre foi uma pessoa muito difícil”, fala. Apesar de ter tomado a decisão de se demitir para encarar novos desafios, que se tornaram gigantescos, até hoje, ele tem gratidão por tudo o que aprendeu no início da carreira.
Por isso, até hoje, Borges sempre pergunta para quem quer fazer moda se é isso que realmente desejam. “Moda é algo para se pensar para a vida. É tanta energia que se tem que colocar, é uma escolha muito grande e forte e, se você não tiver totalmente entregue a isso, não irá fazer direito. Realmente é um sacerdócio. É algo para um olhar incansavelmente curioso.”
Parceria transformadora
Antes de criar o São Paulo Fashion Week nos anos 2001, ele viveu suas primeiras experiências com desfile em 1994 ao lado da empresária Cristiana Arcangeli, organizando Phytoervas Fashion, por seis edições. Em seguida, em 1996, deu origem ao Morumbi Fashion Week, em parceria com o MorumbiShopping, que trouxe um movimento muito importante para todo o setor de shoppings no Brasil.
“Foi uma oportunidade para todo o mercado de shoppings construir uma cultura de moda para o país, com mais valor, marca, escala e resultado. Ter um parceiro inicial como o MorumbiShopping foi fundamental para o SPFW assim como foi essencial para os shoppings terem um parceiro como uma semana de moda”, relata.
E a relação com setor também sempre esteve muito presente na vida pessoal. “Eu sempre preferi ir a um shopping a ficar na rua. Para mim, era mais objetivo. Mas teve um momento que deixaram de ser apenas objetivos para trazer experiências como restaurantes, cinemas, teatros… E nessa cadeia orgânica, cada loja começou também a criar os seus modelos de experiência. Meu filho estuda em Barueri (SP) e frequento o Iguatemi de Alphaville. Entro e saio para buscá-lo já que os amigos dele estão ali. Eu resolvo muito minha vida dentro de shopping, principalmente, agora no pós-home office, em que é possível fazer várias reuniões na mesa de um café e de um restaurante.”
SPFW
Em 2001, houve a institucionalização do SPFW, que passou a ter repercussão global, tornando-se uma das semanas de moda que mais influenciam os mercados de moda do mundo. “Não é que influenciou o Brasil, Milão ou Londres. Influenciou todas as semanas de moda no mundo para que elas tivessem essa preparação para esse mundo que vem se construindo. O circuito de global fashion veio por causa do São Paulo Fashion Week, essa descentralização de uma visão única de moda que era Paris, Londres, Milão e depois Nova York”, reforça. Atualmente, o SPFW gera em torno de 12 mil empregos diretos e indiretos apenas nos dias do evento.
Além disso, a sistematização mexeu com todo o ecossistema de profissionais e empresas envolvidos. Agências, modelos, cabeleireiros, maquiadores, editores, estilistas, fotógrafos, arquitetos, diretores de arte, entre outros profissionais, passaram por grandes transformações após a consolidação do SPFW. “As pessoas veem as barreiras que desfiz, de levar a moda para lugares que ninguém acreditava que fosse possível no Brasil. Eu achava absurdo dizerem que não tinha moda no Brasil.”
E fala sobre esse momento enigmático das passarelas. “A emoção de um desfile ao vivo é única e não vai se repetir nunca mais. Essa é a magia que a moda me dá, inclusive, essa inquietude tem a ver com meu signo, Áries com ascendente e lua em Áries. Eu praticamente não sei o que eu almocei ontem. Estou o tempo todo vivendo agora e amanhã. E isso é um aprendizado para lidar com efetivamente aquilo que possa ser novo em algo como a moda”, diz.
Sempre as pessoas
Para poder gerir um evento dessa magnitude e influência, a primeira lição que Borges traz é sobre a escuta ativa e a importância de se colocar as pessoas no centro. “A riqueza da moda é ouvir e saber gostar das pessoas em todas suas incoerências e diversidades. Moda é algo feito por pessoas para pessoas. Eu percebi que a escuta deveria ser o meu método de conhecimento. Num lugar em que todo mundo gosta de falar e ter opinião, o que eu trouxe é a capacidade de ouvir. Cada pessoa que eu conheço, eu ouço e vou aprendendo e somando. Eu sou especialista em pessoas e não em moda. Tem essa observação que para a moda é fundamental no sentido de trabalho, resultado e inovação”, reforça.
Por isso, seu mergulho é na questão humana e, desde 2001, pode trazer essa revolução para dentro do mundo moda com a internet, a sustentabilidade, a diversidade e a inclusão. “O SPFW é a única semana de moda do mundo que tem como regra a equidade racial nas passarelas desde 2020, mas trabalha a questão de cotas há cerca de 15 anos. Falo que viemos para botar o dedo na ferida, no bom sentido. E isso me anima: ver que um mundo novo está se colocando diante das pessoas, dessa construção, desse novo século e milênio. A gente está, definitivamente, construindo um novo plano.”
O idealizador do SPFW também reforça a importância dos profissionais envolvidos de terem consciência que a moda também tem malefícios e distorções. “Até pouco tempo atrás a moda era para a elite, branca, racista e classista. Isso está sendo desfeito. Hoje, a sociedade é muito mais plural e orgânica, benefícios que a internet e as redes sociais trouxeram”, fala.
O mundo em mudança
Segundo Borges, o metaverso trará muitos benefícios para o mundo da moda. “A questão comportamental é grande dínamo de complemento da moda, que exerce um poder comportamental. Por isso, a moda cria rupturas de comportamento e traz inovações. É uma expressão artística e cultural e define as transformações e as influências da sociedade”, define ele.
Com a globalidade da informação, existe uma disruptura mundial de comportamento. Tudo aquilo que está acontecendo no Planeta vai influenciar de uma maneira sistêmica. “Por isso, as gerações jovens são categorizadas por conceito de comportamento e não por região. Todas estão conectadas pelas tecnologias e acabam tendo uma mudança de comportamento global. Daí, nascem os movimentos contrários e surgem sistemas diferenciados. Por exemplo, tivemos o fast-food, fast-fashion, slow fashion e o slow food. A comida e a roupa têm uma semelhança muito grande de movimento e as duas têm como ponto de convergência o ser humano. Por isso, é natural ver uma pessoa do subúrbio americano, preta, influenciando a alta costura e as marcas de luxo”, reflete.
Borges relembra ainda do momento do país no início de sua carreira e o quanto a redemocratização , a estabilização da economia e mercado aberto mobilizaram a população. “Existia uma energia muito grande nos anos 1990 de construção, de se botar energia para escrever a história. Para mim, estamos de volta ao final da década de 1980 em todos os aspectos políticos e econômicos. Temos uma sociedade totalmente vulnerável e uma inflação que pode que chegar a uma hiperinflação. A pandemia só acelerou questões que estavam ali para acontecer e, ao mesmo tempo em que trouxe uma grande reflexão, fez ajustes de consumo, mas, reforço, para as classes menores”.
Raízes
Mesmo após ter vindo para São Paulo, Borges sempre fez questão de manter contato com a natureza. O sítio que ele tem na cidade de São Roque (SP) há pouco mais de uma década se tornou sua residência fixa. Além disso, tem uma ligação muito forte com o mar e especialmente com a Bahia. Aliás, adotou seu filho, Henrique (16), em terras soteropolitanas quando ele tinha apenas 2 anos. Das suas raízes familiares, também carrega com muito afinco os valores transmitidos pelos seus pais. “Eu estou me descobrindo um pai bastante careta, fico pensando muito na maneira como fui educado. Qual é a herança que eu tenho? A herança que tenho com meu filho não é econômica, é de valor. Temos uma sintonia muito profunda em que sabemos o que estamos dizendo um ao outro só pelo olhar.”
Esse conhecimento profundo das pessoas, familiares ou não, faz com que Paulo Borges continue desbravando novos caminhos e enfrentando todas as adversidades em prol de construir o novo para o mundo todo.