JUL/AGO 2020 - Edição 230 Ano 33 - VER EDIÇÃO COMPLETA

Um pouco de Zezé Motta

7 de agosto de 2020 | por Solange Bassaneze | Fotos: Divulgação
Aos 76 anos, a artista tem aproveitado o isolamento social para compor, escrever poesia e fazer lives nas redes sociais
Entrevista com Zezé Motta - Revista Shopping Centers
Zezé Motta é uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado, criado no início dos anos 1970

Mulher forte, ativista e ícone do meio artístico. Ao longo de mais de 50 anos de carreira, Zezé Motta conseguiu conquistas que impactam diretamente a vida de outros atores. Considerada rainha por atrizes como Taís Araújo, Camila Pitanga e Cris Vianna, ela é admirada também por centenas de milhões de brasileiros por seu trabalho e pela militância que exerce, principalmente, contra a discriminação dos negros. 

Essa representatividade gera um comprometimento ainda maior por parte dela. Segundo a atriz e cantora, hoje, ela lida com o fato de ser fonte de inspiração com naturalidade.

“É óbvio que existe uma responsabilidade também, não só com os artistas, mas com o meu público. Quando estou no set e algum ator ou atriz jovem vem dizer que me adora e que admira meu trabalho, esse carinho é um alento para quem, como eu, vive da arte há mais de cinco décadas”, relata.

A militância de Zezé em defesa da igualdade de raça começou em uma época em que o racismo era velado, ao contrário do que acontece na atualidade, quando o crime conta os negros está escancarado desde as redes sociais chegando até a violência de ações policiais. 

Após a morte de George Floyd nos Estados Unidos, em um ato de extrema brutalidade, aconteceu um despertar coletivo e uma onda de protestos do movimento Black Lives Matter (Vidas negras importam) levou multidões às ruas em diversas partes do mundo, mesmo em meio à pandemia. O gesto de dobrar um dos joelhos no chão com o punho erguido para o alto ganhou uma simbologia de justiça e igualdade. 

Fundadora do Movimento Negro Unificado - Revista Shopping Centers
No final dos anos 1960, Zezé foi questionada por militantes do movimento negro americano sobre o fato de usar uma peruca chanel sobre o cabelo alisado em um espetáculo nos Estados Unidos. Após o episódio, passou por uma fase de autoconhecimento sobre suas origens e mudou seu olhar sobre o poder da sua raça

Segundo Zezé, ainda há muita luta pela frente. “Antes do assassinato de George Floyd, as ações do movimento negro estavam um pouco adormecidas. Logo após esse episódio horrível, voltamos a ser pauta e diversos grupos e movimentos deram uma acordada. Como diz minha saudosa Lélia Gonzalez: não temos mais tempo para lamúrias, é preciso arregaçar as mangas e virarmos esse jogo. Isso é o que eu faço desde 1977”, salienta.

A atriz também foi vítima de discriminação por diversas vezes, inclusive, ao fazer par romântico com Marcos Paulo na novela Corpo a Corpo, em 1984. Na época, pessoas questionavam o fato de uma atriz negra viver um romance na ficção com um ator branco. Quando foi escolhida para fazer Xica da Silva também sofreu ataques racistas. Enfim, o preconceito é secular, mas é fundamental combatê-lo e Zezé orienta a quem vir a ser vítima de um ato de discriminação:

“Denuncie, não se cale e mantenha a cabeça erguida.”

A pandemia

Aos 76 anos, a Zezé Motta tem cumprido o isolamento social em sua residência. Mas, se mantém muito ativa, participando de diversas lives que vão desde entrevistas e debates até shows. E tem curtido essa experiência virtual. “Estou adorando, são muito pedidos, não consigo atender a todos. Essa é uma ferramenta de trabalho deste novo normal em que estamos vivendo”, diz.

Zezé Motta fala sobre isolamento social - Revista Shopping Centers
(Foto: Sofia Paschoal)

Mas, como muitos brasileiros, ela também teve que enfrentar momentos muito difíceis em plena crise sanitária. Sua mãe, Maria Elazir Motta, faleceu aos 95 anos no início de maio. “Perdi minha mãe. Ela teve pneumonia seguida de parada cardíaca. Meu irmão teve Covid-19 e ficou internado 30 dias no hospital. Quase entrei em depressão. Para rebater, decidi me ocupar ao máximo. Além de estar trabalhando, pratico pilates virtualmente três vezes por semana e ligo frequentemente para os meus amigos, principalmente para aqueles que eu sei que estão sozinhos”, conta. 

A cantora ainda está aproveitando esse período para compor e escrever poesias. Mas quando tudo isso passar, ela deseja: “rever os amigos, abraçar e fazer coisas que nunca tinha tempo.” 

Antes da pandemia, com uma vida muito corrida, suas idas ao teatro e ao cinema eram pontuais, por exemplo, para ver a estreia de filme que tinha participado ou prestigiar algum colega. As visitas a um shopping também eram sempre rápidas. “Com certeza, depois dessa pandemia, quero me dedicar mais ao meu lazer”, exalta.

Sobre os shopping centers oferecerem eventos culturais, que agora estão suspensos por causa da pandemia, a atriz diz:

“É bom, importante e necessário. Um país sem cultura é um país sem educação, como disse Fernanda Montenegro. Então, se tem espaço, por que não promover cultura?”. 

Para ela, outros benefícios de se fazer shows em teatros em shopping são o fato dos empreendimentos terem a facilidade do estacionamento e a variedade de restaurantes. Assim como Zezé, todos os brasileiros esperam, em breve, poder voltar a apreciar a arte e cultura em salas de todo o país. 

Em casa

Zezé Motta sobre morar no Leme - Revista Shopping Centers

O apartamento em que reside há quase 10 anos no bairro do Leme, no Rio de Janeiro, tem uma história especial. Nele, viveu a escritora Clarice Lispector, que completaria cem anos em 2020. Esse fato desperta a curiosidade de quem Zezé recebe e até de outras pessoas.

“Aqui no Leme as pessoas revelam o local onde moram pelo nome do prédio. Achei esse hábito muito curioso quando cheguei. Adoraria mudar o nome do edifício para Clarice, uma vez que o local já é conhecido pelos fãs dela.”

Só no dia da visita com o corretor, ela ficou sabendo do fato. “Para tornar tudo mais intrigante, como a obra dela, eu também recebi um presente de uma amiga e o coloquei na entrada da porta. Depois descobri que é um símbolo judaico”, conta Zezé.

Considerada uma das maiores escritoras do século 20, Clarice Lispector nasceu na Ucrânia, foi naturalizada brasileira e era judia. A atriz também é uma grande apreciadora de suas obras. “Gosto de tudo da Clarice. Recentemente, li A Paixão Segundo G.H. e fiz até uma live com a Maria Fernanda Cândido para falar sobre esta belíssima obra.” O livro virou filme sob a direção de Luiz Fernando Carvalho e tem estreia prevista ainda para esse ano. A atriz Maria Fernanda Cândido interpreta G.H., uma das mulheres mais misteriosas da literatura brasileira. 

Live Instagram Maria Fernanda Cândido - Revista Shopping Centers

Trajetória de mais de 50 anos

Com 14 discos, 35 novelas e mais de 40 filmes, a atriz sempre rompeu barreiras. Difícil dissociar sua imagem de um dos papéis mais importantes da sua carreira: a belíssima e sedutora Xica da Silva. “O filme me tornou popular no Brasil e no mundo. Até hoje as pessoas me chamam de Xica da Silva e com ele finquei o pé na carreira. Me trouxe muita coisa boa, me levou a 16 países e foi uma experiência fantástica viajar pelo mundo. Depois disso, fiz mais quatro longas com Cacá Diegues”, relembra. 

Na época em que o cineasta estava fazendo testes para essa personagem, Zezé sabia, mas não teve coragem de se oferecer. “Ele não estava encontrando a atriz para fazer a Xica. Se não encontrasse, como disse em sua biografia, ele não faria o filme.”

Certo dia, Nelson Motta lembrou ao diretor sobre a atriz do musical Godspell, que ela encenou em 1974. Então, foi chamada e fez o teste de uma cena em que Xica é proibida de entrar na igreja. Dias depois soube que tinha passado e um mundo de possibilidades se abriu na vida da atriz. 

Trajetória da artista - Revista Shopping Centers

Na época, Zezé Motta tinha 32 anos, mas sua carreira começou aos 21, após fazer um curso no Tablado e estrear no espetáculo Roda Viva. A peça, escrita por Chico Buarque, é uma das mais emblemáticas dos anos 1960 e sofreu duros ataques durante a ditadura. 

Por sua atuação em Xica da Silva, recebeu o Troféu Oscarito. Aliás, são inúmeras as homenagens de reconhecimento ao seu trabalho e, quando completou 50 anos, sua trajetória foi o tema do musical “Muito Prazer, eu sou a Zezé!. 

E não é só nas artes cênicas que revela seu talento. Sua voz poderosa emociona o público. Seu primeiro disco solo foi gravado ainda na década de 1970 com músicas inéditas compostas por Rita Lee e Moraes Moreira. Mesmo em isolamento, tem feito shows por meio de lives.

Com uma trajetória tão rica e peculiar, sua história virou biografia por duas vezes.

A segunda, Zezé Motta – Um Canto de Luta e Resistência, foi escrita por Cacau Hygino e conta os principais episódios da sua vida pessoal e profissional e trata de temas como velhice, sexo e racismo. 

Com um jeito peculiar e maternal de tratar as pessoas, Zezé conquista a todos com seu sorriso contagiante e, nos palcos, faz o público se emocionar há mais de cinco décadas. Então, só nos resta a aplaudir mais uma vez essa mulher empoderada que usa da sua arte para levar cultura por todos os cantos do país e conscientizar o público sobre problemas recorrentes da sociedade brasileira. 

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