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Inclusão e Diversidade: A Importância de Políticas de Respeito à Identidade de Gênero para um Ambiente Seguro e Acolhedor

9 de dezembro de 2024 | por Anna Carolina Dias Esteves
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Anna Carolina Dias Esteves: Possui ampla experiência na gestão do contencioso cível de empresas de varejo, incluindo litígios civis, redação jurídica, direito corporativo e habilidades de negociação. Atua no desenvolvimento de estratégias para obtenção de lucros, redução de passivos e recuperação de créditos. Especialista em consultoria na área cível, realiza análises e previsões de riscos por meio de pesquisas em legislação, doutrina e jurisprudência.

A sociedade ocidental é guiada por uma cultura de binarismo e heteronormatividade compulsória, que pressupõe o reconhecimento social apenas de relacionamentos entre pessoas de sexos opostos. Como consequência, orientações sexuais e identidades de gênero que fogem desse padrão são marginalizadas, fazendo da heterossexualidade uma norma universal na sociedade. A cultura impõe a ligação entre o sexo biológico, gênero e orientação sexual, direcionando as pessoas para a procriação. Esse modelo, muitas vezes, gera exclusão e segregação, especialmente para aqueles que não se encaixam nesse padrão.

A pessoa transexual é aquela que não se identifica com o gênero que lhe foi designado ao nascer, definido pela observação anatômica que determina o sexo biológico. Assim, o sexo anatômico e a identidade de gênero não coincidem, sendo esta última associada ao gênero oposto. Como descreve Maria Berenice Dias, a pessoa transexual sente uma desconexão psíquica e emocional com seu sexo biológico.

Existem diversos termos para se referir a grupos que compartilham experiências semelhantes de identidade de gênero, como trans, travestis, TransVestiGêneres, transexuais, transgêneros, não-binárias, não-bináries, agêneras, entre outras variações de gênero. Neste artigo, usamos o termo ‘trans’ para nos referir a pessoas que, ao longo de suas vidas, passaram por mudanças em relação à sua identidade de gênero.

As pessoas trans, enquanto sujeitos de direitos, estão protegidas pelo princípio da dignidade da pessoa humana e são titulares dos direitos de personalidade, incluindo o direito à intimidade e ao próprio corpo. A identidade de gênero é uma escolha pessoal, que surge da autonomia privada dos indivíduos, permitindo que cada um decida o que é melhor para si.

A Constituição Federal de 1988 assegura que todos são iguais perante a lei, sem qualquer tipo de discriminação. A dignidade da pessoa humana, garantida pela Constituição, protege o direito de todas as pessoas, independentemente de sua identidade de gênero (sejam homens cis, mulheres cis, homens trans, mulheres trans, não binários, travestis, etc.), a viverem de acordo com a orientação sexual que escolherem.

No século 19, o processo de urbanização e o aumento das fábricas levaram ao surgimento e à expansão dos banheiros públicos, inicialmente destinados apenas aos homens que circulavam em espaços públicos. À medida que as mulheres passaram a trabalhar nas fábricas, foram criados banheiros para elas, ampliando o espaço doméstico. Assim, os banheiros públicos passaram a ser divididos em dois: masculino e feminino.

No Brasil, não há uma lei específica que garanta o direito das pessoas trans de usarem banheiros de acordo com sua identidade de gênero. Porém, existem algumas normas e resoluções de órgãos, como o Ministério da Saúde e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que promovem ações para assegurar o respeito aos direitos dessas pessoas.

O Supremo Tribunal Federal (STF) já decidiu, em diversas ocasiões, em favor da proteção dos direitos das pessoas trans, com base nos princípios constitucionais da dignidade humana, igualdade e não discriminação.

Desde 2015, a administração pública federal, por meio do Ministério Público do Trabalho (MPT), regulamenta essas questões. A Portaria 1.036, de 1º de dezembro de 2015, trata do uso do nome social e, no artigo 4º, do uso de banheiros por pessoas trans. A norma assegura o direito ao uso de banheiros, vestiários e outros espaços segregados por gênero, de acordo com o nome social e a identidade de gênero da pessoa

Em 2018, o Ministério Público da União (MPU), por meio da Portaria PGR/MPU nº 104, de 12 de dezembro de 2018, garantiu, no artigo 5º-A, o direito ao uso de banheiros e vestiários conforme a identidade de gênero no âmbito do MPU.

Esses regulamentos asseguram o direito de uso de banheiros, vestiários e outros espaços segregados por gênero de acordo com a identidade de gênero da pessoa, independentemente de cirurgia de redesignação sexual.

Além disso, algumas cidades e estados estão implementando políticas de inclusão para permitir o uso de banheiros de acordo com a identidade de gênero, com o objetivo de criar ambientes seguros e respeitosos.

A cidade de São Paulo tem adotado medidas para garantir o uso de banheiros conforme a identidade de gênero. Um exemplo é o Mirante 9 de Julho, um café localizado atrás do MASP, que implementou banheiros unissex, permitindo que todos os visitantes escolham o banheiro de acordo com sua identidade de gênero. Essa ação busca criar um ambiente inclusivo e acolhedor para a comunidade trans.

O que ocorre no Mirante 9 de Julho não é um caso isolado. Desde que o debate sobre identidade de gênero ganhou força, bares e restaurantes da região central de São Paulo vêm adaptando seus banheiros para que todos se sintam confortáveis.

A sociedade brasileira, tradicionalmente conservadora em questões de gênero, tem demonstrado sinais de mudança nas últimas décadas, com maior visibilidade e apoio às questões LGBTQIAP+.

O ativismo LGBTQIAP+ desempenha um papel fundamental na luta pelos direitos das pessoas trans, promovendo campanhas de conscientização, organizando eventos para dar visibilidade e realizando ações legais para garantir direitos civis.

O princípio da dignidade da pessoa humana, garantido pela Constituição, exige respeito, o que inclui combater a transfobia, violência e discriminação, seja no âmbito familiar ou no trabalho. Apenas a lei, porém, não é suficiente para erradicar a violência moral, psicológica, discriminação e marginalização que as pessoas trans enfrentam.

A discriminação e o tratamento inadequado impactam a saúde mental das pessoas trans, aumentando os riscos de depressão e ansiedade, e comprometem sua qualidade de vida.

As pessoas trans frequentemente são vítimas de violência e discriminação. O Brasil é considerado um dos países mais perigosos para essa população, que enfrenta agressões físicas e verbais, além de discriminação em serviços de saúde, educação e emprego, inclusive no simples uso de banheiros públicos.

As restrições ao uso de banheiros de acordo com o gênero com o qual as pessoas trans se identificam têm consequências jurídicas, incluindo a violação da dignidade da pessoa humana e dos direitos da personalidade.

Estabelecimentos comerciais são responsáveis, de forma objetiva, pelos atos praticados por seus funcionários e pelos danos (materiais e/ou morais) causados aos consumidores.

Shoppings centers são locais de lazer, cultura, alimentação, serviços e convivência, onde se espera que pessoas de todos os perfis sejam atendidas sem discriminação. Esses ambientes promovem diversidade e inclusão, garantindo acesso a todos em espaços abertos ao público.

Por exigência municipal, shoppings devem ter banheiros separados por gênero (masculino e feminino), mas não existem leis específicas que orientem sobre o uso desses banheiros pela população transgênero.

As decisões judiciais, tanto nos tribunais superiores quanto nos locais, têm ajudado a moldar a compreensão sobre identidade de gênero, criando precedentes que influenciam a aplicação da lei em casos futuros.

No caso do uso de banheiro por pessoas transgênero, é importante reconhecer que tanto o gênero biológico quanto o gênero com o qual a pessoa se identifica fazem parte de sua personalidade e devem ser respeitados. Se alguém sofrer discriminação ou ofensas ao usar o banheiro, isso configura um dano moral que deve ser reparado, e os responsáveis devem ser punidos.

No entanto, a busca por indenização não deve desvalorizar o conceito de dano moral. O Judiciário deve evitar alimentar uma “indústria do dano moral”, tratando isso como algo comum, o que pode distorcer a essência do dano moral. Apenas um sofrimento intenso deve ser considerado como tal, não meros problemas do dia a dia.

Restringir o uso do banheiro para uma pessoa transexual é uma violação do direito à identidade de gênero, que é parte fundamental da personalidade e não está ligada ao sexo biológico, mas à identificação psíquica de cada indivíduo.

A identidade de gênero está diretamente ligada à dignidade da pessoa humana, um princípio fundamental da nossa República (art. 1º, III, da Constituição Federal) e do nosso sistema jurídico.

Neste contexto, a dignidade humana é um valor essencial na sociedade e na Constituição. Embora tenha havido avanços no respeito aos direitos humanos, incluindo identidade de gênero e orientação sexual, casos de discriminação ainda são frequentes e, muitas vezes, acabam gerando ações judiciais.

A maioria dos tribunais brasileiros, incluindo o Supremo Tribunal Federal (STF), reconhece que a identidade de gênero deve ser respeitada, permitindo que pessoas usem os banheiros de acordo com o gênero com o qual se identificam. Essa postura está ligada ao princípio da dignidade da pessoa humana, garantido pela Constituição.

Os tribunais têm sido firmes contra práticas discriminatórias, considerando que proibir alguém de usar o banheiro conforme sua identidade de gênero é uma forma de discriminação e violação de direitos como dignidade e igualdade. Em várias decisões, lojas e órgãos públicos foram responsabilizados por situações constrangedoras e discriminatórias, e quando a dignidade de alguém é ferida, essa pessoa pode ter direito a uma indenização por danos morais.

A jurisprudência destaca a importância de proteger os direitos fundamentais de minorias. Tratar pessoas trans com respeito é essencial para garantir igualdade e combater a marginalização.

Ainda não há uma decisão final do STF sobre o uso de banheiros por pessoas trans em shoppings, nem uma regra jurídica clara. Nesse contexto, o ideal é adotar o bom senso e seguir decisões anteriores sobre o tema. Restringir o uso de banheiro de acordo com a identidade de gênero desrespeita a dignidade da pessoa, e shoppings deveriam reconhecer que cada pessoa deve ser tratada conforme o gênero com o qual se identifica. Impedir isso é discriminatório e contraria o serviço inclusivo que os shoppings devem oferecer.

Alguns museus, como o Museu de Imagem e Som de São Paulo (MIS), têm adaptado seus banheiros para que todos usem o espaço com o qual se sintam mais confortáveis. Recentemente, o MIS trocou as placas dos banheiros, deixando claro que o usuário decide qual banheiro usar. Além dos museus, alguns festivais de música também têm feito adaptações semelhantes, mesmo sem uma lei que obrigue essa medida.

A questão ainda está em debate no STF. A Ministra Cármen Lúcia é responsável pela análise de uma ação (ADPF 1169) que questiona uma lei do Município de Gama/GO, exigindo a separação entre banheiros masculinos e femininos, e que será discutida futuramente.

Recentemente, o STF decidiu em outro caso (ADI 4275) que pessoas trans têm o direito de alterar nome e gênero em documentos oficiais sem a necessidade de provas, exames médicos ou psicológicos, bastando o desejo de serem reconhecidas conforme sua identidade de gênero. O STF afirmou que ‘o direito à igualdade sem discriminação inclui a identidade ou expressão de gênero’, reforçando que respeitar a identidade de gênero é também uma questão de igualdade.

Em outra decisão recente, na ADO nº 26/DF, o STF, com relatoria do Ministro Celso de Mello, estabeleceu que, até que o Congresso Nacional crie uma lei sobre o assunto, atos homofóbicos e transfóbicos são tratados como racismo, conforme a Lei nº 7.716/1989. Essa equiparação também se aplica ao crime de homicídio, considerando motivo torpe a discriminação baseada em orientação sexual ou identidade de gênero.

Durante o julgamento que equiparou crimes de homofobia e transfobia ao crime de racismo, o Ministro Gilmar Mendes destacou que identidade de gênero e orientação sexual são protegidas pela Constituição, pois são elementos essenciais da personalidade humana.

É importante destacar que empresas e instituições públicas preocupadas com a diversidade estão implementando banheiros inclusivos em seus espaços. Na Agenda 2030 da ONU, a meta ODS 10.3 estabelece o objetivo de ‘garantir a igualdade de oportunidades e reduzir as desigualdades de resultados, eliminando leis, políticas e práticas discriminatórias e promovendo legislação, políticas e ações adequadas.’

Diante disso, é essencial que empreendedores e donos de shoppings compreendam a importância de promover ambientes inclusivos e respeitosos para todos os clientes, incluindo a comunidade LGBTQIAP+. Políticas internas que respeitem a identidade de gênero e garantam o uso seguro de banheiros e espaços públicos não apenas cumprem diretrizes de direitos humanos e jurisprudência, mas também refletem uma gestão moderna e consciente das necessidades de um público diverso.

Além de reduzir o risco de ações judiciais por discriminação, práticas inclusivas contribuem para construir uma imagem positiva do empreendimento, aumentando a fidelidade dos clientes e posicionando a marca como socialmente responsável. Inclusão não é apenas uma questão de direitos humanos; é também uma estratégia de mercado que atrai um público mais amplo e engajado.

Ao investir na diversidade e respeito, os shoppings se colocam à frente das mudanças sociais e demonstram compromisso com um futuro mais igualitário e inclusivo.

Muitas empresas estão adotando políticas inclusivas para funcionários e clientes trans, reconhecendo a importância de criar ambientes de trabalho e consumo que respeitem a diversidade de gênero.

Para que as políticas inclusivas sejam eficazes, é essencial que os colaboradores sejam treinados para lidar com questões de identidade de gênero e diversidade de forma respeitosa e acolhedora. Esse treinamento deve abranger o atendimento ao público e a conscientização sobre o respeito à identidade de gênero em todos os aspectos do serviço. Capacitações contínuas ajudam a prevenir conflitos e constrangimentos, além de reforçar a imagem do shopping como um espaço inclusivo.

Outra ação relevante é promover campanhas de comunicação no shopping para informar e conscientizar os clientes sobre o compromisso do local com a inclusão e o respeito à diversidade. Isso fortalece a percepção pública de responsabilidade social do empreendimento e incentiva o respeito entre todos os frequentadores.

A combinação de políticas claras, treinamento eficaz e comunicação transparente transforma o shopping em um ambiente verdadeiramente inclusivo, seguro e alinhado com os valores de respeito à dignidade humana.

A opinião dos autores não reflete, necessariamente, a opinião da Abrasce.

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