Marketplace de shopping centers: perspectivas jurídicas
O primeiro centro comercial brasileiro surgiu em 1966, na cidade de São Paulo, quando o engenheiro-arquiteto Alfredo Mathias criou o Shopping Center Iguatemi. Desde então, o crescimento e aprimoramento do setor foram inevitáveis, tendo surgido vários outros empreendimentos por todo o país e, principalmente, nas grandes capitais. Hoje o Brasil conta com aproximadamente 648 shoppings, dos quais 456 são associados à Abrasce.
Desde o advento da Lei nº 8.245/1991, dentre várias outras disposições, o legislador sabiamente criou uma regra específica para essa indústria, ao adotar o “Princípio da Liberdade Contratual” no caput do Artigo 54, que estabelece o seguinte:
“Nas relações entre lojistas e empreendedores de shopping center prevalecerão as condições livremente pactuadas nos contratos de locação respectivos e as disposições procedimentais previstas nesta lei”.

A estrutura contratual utilizada desde os primeiros shoppings permanece a mesma, estando as relações entre locador e locatário simultaneamente disciplinadas através de (i) contrato atípico de locação, (ii) escritura declaratória de normas gerais regedoras das locações, (iii) estatuto da associação de lojistas, e (iv) regimento interno.
Na sua grande maioria, os contratos de locação estabelecem um aluguel mínimo mensal, e outro percentual sobre o faturamento bruto, devendo o locatário pagar mensalmente o maior deles. Com isso, tornam-se de grande relevância as cláusulas que disciplinam a possibilidade do locador, de várias formas, fiscalizar as vendas mensais do seu inquilino. Também é importante saber onde estão armazenados os produtos e mercadorias vendidas, ou seja, se na própria loja ou em outro local fora do shopping.
É inegável que, em muitos casos, os instrumentos que regem tais locações não refletem as tendências mais recentes do comércio e consumo, de forma que, como se verá a seguir, é importante que se faça determinadas adequações, bem com que sejam interpretados de forma a preservar sua aplicabilidade, dadas as novas e diversas modalidades de vendas online, que sofreram aumento expressivo nos últimos anos, especialmente durante e após o período da pandemia da COVID-19, e, hoje, representam considerável percentual do faturamento mensal.
O que no passado foi o “Estoque de Mercadorias”, obrigatório para todos os lojistas de um shopping, e que consistia em manter na loja produtos suficientes, de qualidade e preço, visando gerar maior resultado e atender a demanda dos clientes, foi substituído pelo Centro de Distribuição (“CD”), onde são armazenados todos os produtos que atendem diversas lojas de um único lojista. Com isso, tornou-se possível realizar e pagar na loja uma venda direcionada pelo próprio vendedor ao “CD”, que posteriormente encaminhará a mercadoria para qualquer endereço solicitado pelo cliente, e dependendo do local, ser entregue no mesmo dia.
O locador terá enorme dificuldade para apurar qual foi o real emitente da respectiva nota fiscal (NF), e que, em tese, deve ser computada no faturamento mensal da locatária. A não inclusão dessa venda no faturamento bruto constitui infração contratual grave, passível de rescisão da locação. De forma que as declarações de vendas devem reportar negócios iniciados, encaminhados ou concluídos dentro do shopping, não importando a sua natureza e forma, independentemente do local de entrega.
Atualmente diversos são os canais de vendas online, principalmente pela facilidade de acesso à internet através de celular, tablet, notebook etc. Por comodidade e principalmente agilidade, está se tornando comum o cliente realizar a compra e pagar através do smartphone do vendedor na própria loja, podendo escolher se recebe a mercadoria na hora ou em casa. A nota fiscal nesses casos é encaminhada ao comprador por e-mail, SMS ou WhatsApp.

Partindo dessas premissas, e como já dito, torna-se de enorme importância a correta fiscalização exercida pelo locador, visando apurar o real faturamento do inquilino, sendo vedada a utilização da loja para finalidade diversa daquela estabelecida no contrato.
Ao apreciar semelhante tema, em brilhante voto relatado pelo Ministro João Otávio de Noronha, no REsp 1295808/RJ, 3ª Turma, julgado em 24/04/2014, o Colendo STJ assim se pronunciou:
1. O lojista que se estabelece em um shopping center integra a sua empresa com o empreendimento para usufruir do planejamento, organização e clientela que o frequenta. Portanto, mais que um simples contrato de locação, há uma relação associativa na qual a colaboração entre os lojistas e o empreendimento é necessária para concretizar-se esse modelo de exploração comercial. 2. Nos contratos de locação de loja em shopping center, é fixada a cobrança de aluguel percentual, proporcional ao faturamento bruto mensal da atividade comercial, e que se justifica devido à infraestrutura do empreendimento, que colabora para o sucesso do lojista locatário. O aluguel percentual representa um rateio do sucesso, que em parte é possibilitado pela estrutura e planejamento oferecidos pelo shopping center. 3. Representa violação contratual a conduta do locatário que, a despeito de ter assumido a obrigação de efetuar o pagamento do aluguel com base no faturamento, instala ponto de venda de produtos pela internet, que são faturados em nome de empresa diversa. Os ganhos com o comércio eletrônico não ingressam no faturamento da loja situada no shopping center locador e, por isso, não integram a base para o cálculo do aluguel. (…) 6. Recurso Especial provido.
O avanço e diversificação quase que diária dos canais de vendas não pode servir de caminho para o descumprimento de regras contratuais. É inquestionável a obrigatoriedade de incluir no faturamento mensal as vendas que, em qualquer das suas etapas, tenham utilizado a loja e, consequentemente, toda estrutura oferecida pelo shopping, decorrente de know-how e elevados investimentos efetuados pelos empreendedores.
De todo o exposto, emerge com contundente clareza que todas as vendas realizadas mediante e-commerce, utilizando qualquer dispositivo eletrônico ou tecnologia, iniciadas, transitadas ou concluídas na loja, devem ser declaradas e incluídas no faturamento bruto da locatária, para apuração e incidência do aluguel percentual. A inobservância caracteriza infração contratual, passível de rescisão do contrato, sendo certo que eventual ação a ser proposta deverá ser instruída com provas contundentes e inequívocas.
* A opinião dos autores não reflete, necessariamente, a opinião da Abrasce.